Testemunho de uma Colher

Um conto sobre o fim de uma era.

Testemunho de uma Colher

Aqui estou, em um saquinho de plástico, descartada na calçada e esperando meu derradeiro fim.

A história de minha existência passa por minha memória. Confeccionada com a mais pura prata de Potosi, fui ornamentada em Paris e exportada para um fino shopping na burguesia paulistana.

Lembro-me do rosto simpático daquela senhora e suas pérolas, a me encarar na loja. "É esse. Pode embrulhar." "Sim, presente de casamento."

Minha vida foi de festas e banquetes. Por anos, eu era requerida apenas em momentos especiais: presenciei pianos ao vivo ressoando em minha estrutura metálica, degustei a caramelizada soupe à l’oignon e a adocicada panna cotta em meu corpo côncavo. Adentrei bocas que exalavam odores de habanos e conhaques.

Mas os banquetes, antes mensais, passaram a ser bimestrais. Bimestrais, viraram semestrais. E a diversidade dos ingredientes decresceu na mesma proporção.

Quando percebi, saía da caixa apenas uma vez por ano. Refletindo em minha superfície luzes cintilantes em verde e vermelho, reduzi-me a servir pavê.

Minhas irmãs, uma a uma, começaram a desaparecer. Vendidas, penhoradas, trocadas, diziam.

Restou apenas eu. Já esperava meu fim.

Mas uma nova guinada do destino aconteceu. Comecei a ser usada novamente. Recusei-me a pensar sobre o que era aquele líquido azulado e ácido posto em mim, de espírito tão venenoso. Lutei com todas as minhas moléculas de prata contra a ruína e o estigma permanente que aquela substância tóxica poderia provocar em meu corpo.

Diariamente, minha senhora me usava para misturar aquela vil substância com sucos, com sobremesas, com caldos. Eu entrava e saía de uma boca cada vez mais doente e viciada de um homem.

Até que um dia, por fim, o corpo dele sucumbiu. Em uma última colherada, senti a epiglote se contorcer em devaneio, o esôfago regurgitar o vômito vermelho e seu último suspiro embaçar meu espelho.

Bem, já sinto o caminhão de lixo vindo. Única testemunha, serei expurgada para a ocultação.

Este é um conto antigo, resgatado por acaso de um computador esquecido na casa dos meus pais — ainda fiel ao velho Windows XP. A narrativa parte de um ponto de vista incomum: o de uma colher. Anos depois, li em um blog sobre escrita criativa que assumir a perspectiva de objetos pode ser um excelente exercício de estilo. É algo que explorei pouco — talvez este seja meu único conto nesse formato —, mas que ainda me intriga e talvez mereça ser revisitado.