Farol de Areia

Reunião de imagens e textos de Thomas J Schrage

O Som no Desfiladeiro

Terça-feira, ainda são quatro da manhã na pequena vila de Sopé Encantado. Como em todas as outras semanas, este era um momento de expectativa. Pontualmente, em meia-hora, o velho cargueiro minerador com o nome Ares VI piscando em néon na lataria passará pelos céus. Infelizmente.

As suas velhas turbinas, já sem os silenciadores, trepidarão frenéticas enquanto seus jatos queimarão o ar. As tortas hélices zunirão, rasgando o silêncio matinal. A nave, estrondosa, atiçará o uivo dos cachorros, o choro dos bebês e toda sorte de maldição que a população local poderia esbravejar.

A vila de Sopé Encantado, como todas as demais vilas ao longo do cânion — turisticamente chamado de “o mais profundo cânion das colônias extrassolares”, apesar de não haver turismo nenhum por lá — vive da pacata mineração artesanal, cuja exploração avança dos vales encravados até o topo das escarpas íngremes do planeta, que de tão altas alcançam o que se convencionou chamar de atmosfera.

E assim, os labirintos dos desfiladeiros servem, desafortunadamente, de caminho único para todo o transporte aéreo, ao passo que também proporcionam uma rica acústica, como um perfeito teatro ao caótico berro daquela forasteira nave Ares VI.

Um sofrimento coletivo, mas com o qual cada habitante lida à sua maneira. Há aqueles que tampam os ouvidos com trapos e almofadas; outros buscam refúgio na difícil meditação; há ainda aqueles que não se preocupam com os efeitos colaterais dos calmantes.

Fato era que a timidez de cada um daqueles moradores da vila os fazia sentir-se envergonhados por reclamar e compartilhar o tormento com seus vizinhos. Foi apenas há dois meses que a questão foi realmente vista como problema municipal.

O velho Alastor morreu após uma queda, numa terça-feira de manhã, precisamente às seis horas. Aquela fora sua última exploração matutina pelas difíceis trilhas que subiam do vale ao cimo do cânion.

Mesmo que o velho Alastor sofresse de conhecidos problemas cardíacos, labirintite, uma meia cegueira e certo alcoolismo, foi no seu enterro — com quase a totalidade dos quinhentos moradores locais — que um pequeno comentário descontraído, solto inocentemente, trouxe uma pauta maior:

“O velho enganava a morte há décadas”, diziam. “Já saiu da boca de um Ursus, bebeu metano, matou cinco piratas zeburianos com uma pedra, e isso tudo num mesmo dia! Mas por fim foi aquela maldita nave escandalosa que deve tê-lo matado. Morreu de cansaço”.

Subitamente, entre os risos saudosistas das façanhas de Alastor, surgiu a epifania. O incômodo da nave pelo desfiladeiro era um problema de saúde pública. Decerto, mesmo que aquele tivesse sido um comentário, todos naquele momento tiveram a certeza: sim, ele morreu de cansaço por ter sido arrancado de sua cama ainda de madrugada. Culpada só podia ser a Ares VI.

Começaram os debates. Alguém citou que deveria haver alguma lei, escrita em algum local do universo, obrigando naves velhas a usar silenciadores em turbinas. O prefeito deveria impor a lei.

“Não pode, o controle dos céus se dá pela Polícia Estrelar”, alguém observou.

Eis que a tal polícia estava sofrendo com “problemas maiores, como pirataria, contrabandistas, separatistas, e todas as outras classes de criminosos, não sobrando agentes para serem enviados”, nas palavras do Agente Policial do Batalhão de Andrômeda, por carta timbrada.

Percebendo-se sozinhos, rastrearam a nave, estudaram cuidadosamente suas rotas, altitudes, velocidade. Descobriram que a nave transportava o minério oriundo de uma vila industrial, pertencente a uma daquelas empresas coloniais.

Descobriram também que a nave era particular e fazia parte da frota de um grupo composto de pessoas nada agradáveis de se lidar, e que agora controlavam o transporte extrasolar pela região.

Por fim, uma petição foi enviada à empresa mineradora.

A resposta veio de forma oficial, num ofício que tinha pelo menos dez carimbos. Dizia: “nada no contrato justificava a rescisão com a nave Ares VI, pois não há cláusula específica sobre perturbação pública”. O mensageiro e funcionário da empresa tentou justificar-se: “Muitos encargos, multas, discussões jurídicas em caso de uma rescisão contratual sem justa causa, sabem como é”.

Passaram então para planos maiores: talvez, derrubar a nave, quem sabe. Um ataque silencioso; sem aviso prévio, sem negociação. Ah, doce destruição!

“Mas a nave em queda poderia chocar-se nas escarpas”, um professor sinalizou. “E se a escarpa desmoronar sobre o rio, soterrando-o? Poderíamos criar inundações à montante e seca à jusante, um total colapso ambiental”.

Era um problema, ponderaram. “E há o problema das armas… Poderíamos ser confundidos com criminosos”, outra pessoa completou. Todos acenaram a cabeça.

Era um deleite imaginar a nave explodindo em vários ângulos, numa bola de fogo da liberdade, mas a pacata população local sabia que nunca chegariam a tanto, não eram más pessoas.

Ponderou-se falar diretamente com a tripulação; quem sabe era apenas um problema financeiro do capitão que simplesmente não podia comprar silenciadores novos. Concordaram que não era este o caso, era impossível não perceberem o incômodo causado por suas turbinas, devia ser algo propositado. Todos se preocuparam também que a tripulação poderia ter birra da vila. Era melhor a vila continuar despercebida, evitar aquele tipo de gente. Um dia, naturalmente, a nave seria substituída, quem sabe.

Terça-feira, quatro e vinte da manhã. Os habitantes de Sopé Encantado, com os corpos acostumados à madrugada, levantam adiantados precedendo o próprio barulho.

Aquecem a água do café, colocam os tampões nos ouvidos das crianças pequenas, prendem os cachorros em quartos abafados. Em dez minutos, a pontual velha Ares VI passará.

Este conto nasceu da raiva, embora carregue o disfarce do humor. Sempre fui de sono absolutamente frágil. Felizmente, moro num lugar geralmente quieto, o que ajuda. Mas houve um tempo — breve, mas ruidoso — em que um segurança chegava ao condomínio para iniciar o seu batente, com uma moto de escapamento aberto. Ele chegava cedo, sempre cedo demais.

Meu cão, um pastor alemão de hábitos peculiares, tinha por essas motos uma espécie de devoção ritual: bastava ouvi-las e rompia em uivos longos, lancinantes, assustadores. E cada uivo se demorava minutos... e cada minuto, àquela hora do dia, pesa como horas.

Há situações em que a indignação se sente impotente, condenada à repetição do incômodo. Mas um dia, registrei a cena. Levei a gravação ao síndico. E, para minha surpresa, o barulho se calou — com gentileza e acordo.