Protocolo Sanitário Sete-Beta
13 de maio de 2025
Quando a Tenente destrancou e empurrou a escotilha do corredor de descompressão, a primeira coisa que vimos não foi o vazio esperado, mas um Cyborg. Ao notar nossa presença, ele nos apontou uma arma.
Congelamos. Não éramos militares. Não de verdade. Quero dizer… fizemos o treinamento, mas nunca tivemos prática. Nossa reação foi mais de espanto do que de instinto.
Demoraram alguns segundos para que o medo se dissolvesse na estranheza. Aquilo não era uma arma. Era um equipamento branco, liso, com uma luzinha verde piscando sem pressa. Ele apontou para a testa atônita da Tenente.
— Temperatura corporal: trinta e seis vírgula cinco graus Celsius. — Dise o Cyborg. Então complementou, como se precisasse explicar: — Isso quer dizer que você não está com febre.
Ficamos ainda mais confusos. Esta estação, a Esmeralda, deveria estar... desligada. Vazia. Como tantas outras, abandonadas às pressas anos atrás, naquele tempo em que o universo pareceu ganhar vontade de silenciar a humanidade.
Só então, começávamos a reativar as rotas comerciais. Nossa missão era simples, mais arqueológica do que militar: inventariar o que restava das estruturas abandonadas ao relento.
A Tenente, com a paciência de quem já lidou com burocracias espaciais muito piores, hesitou, processando o que dizer. Escolheu, por fim, a gentileza.
— Eh... obrigada. Pela leitura? Podemos passar?
Mas o Cyborg parecia imune à cortesia.
— Infelizmente, entrada negada. Nenhum de vocês está usando máscara. Nem está respeitando a distância interpessoal mínima de três metros.
A Tenente piscou, voltando à realidade.
— Sim, bem... nós vimos que a estação já estava descomprimida, com o sistema de reciclagem do ar funcionando. Por isso não estamos com trajes... Pensamos que...
— Mesmo assim — interrompeu o Cyborg, a voz robótica implacável — o Protocolo Sete-Beta, subitem três ponto quatro, exige o uso de máscara cirúrgica ou equivalente em ambientes fechados compartilhados, independentemente da pressurização e reciclagem atmosférica.
A Tenente colocou a mão na testa.
— Nossa... a pandemia já passou. Já faz mais de três anos. Você ficou ligado todo esse tempo?
O Cyborg hesitou. Havia algo quase humano naquele silêncio breve. Seus olhos — ou os sensores que nos encaram — piscaram devagar, confusos.
A Tenente então se voltou para mim.
— Libera o acesso à rede da nave para ele, tudo bem?
Eu consenti com um gesto. Assim que autorizei no tablet, foi instantâneo. Os olhos do Cyborg brilharam num azul elétrico. Durante alguns segundos ele recebeu a atualização — aqueles últimos três anos e meio despejados em sua memória. Injusto, pensei. Despejar sobre ele tantas lembranças de um tempo que a maioria de nós tenta apagar, camada por camada.
De súbito, o brilho azul cessou. Ele se endireitou com um som metálico. Baixou o equipamento branco e se moveu para o lado, abrindo espaço na porta.
— Bem-vindos à Estação Esmeralda — a voz um pouco menos metálica. — Informamos que nossos restaurantes e serviços de hospedagem permanecem desativados. No entanto, bebidas e suprimentos selados com data de validade não expirada podem ser adquiridos com crédito padrão na unidade de autoatendimento no Nível Dois. Agradecemos a compreensão e desejamos uma boa estadia.
Entramos. A estação era um fantasma de si mesma, mas não um fantasma assustador. Era um fantasma triste. Ouvia-se um zunido de maquinários autônomos. O eco dos nossos passos era o único som que o lugar mastigava. As luzes pousavam sobre mesas e balcões vazios, sem encontrar um rosto humano. No chão, só havia o rastro seco das folhas, caídas de plantas totalmente secas. O ar bebia de si, reciclado demais, com um leve gosto de coisa nenhuma. Senti um nó, ali, onde a saudade cedia à claustrofobia.
Atrás de nós, vi o Cyborg se mover com precisão robótica. Puxou um frasco e começou a borrifar álcool em gel meticulosamente sobre cada superfície onde nossas mãos poderiam ter repousado. Protocolo Sete-Beta. Implacável.
Esse é um conto que nasceu de uma antologia do Mia Couto, sobre "as pequenas doenças da eternidade", que possui alguns contos sobre a pandemia da Covid. Pensei que esse era um tema interessante, do qual eu me esquivava de escrever, mas que teve um impacto profundo (e muita coisa saiu legal disso... o final da série Locklands de Robert Jackson Bennett, o livro "A Sociedade de Preservação dos Kaiju" de Scalzi, dentre outros.