Protetor Solar Especial
1º de abril de 2021Assim que fizemos a baldeação perto de Saturno, entrando na astro-linha que seguia para a Terra, as roupas de minha filha começaram a chamar a atenção.
Ou talvez não fosse apenas sua roupa, mas sua própria fisionomia, tão parecida com a da mãe: pupilas dilatadas, um nariz de formato peculiar, a textura do cabelo tão única e aquela cor da tez que apenas os herdeiros dos colonos de longínquos sistemas estelares possuíam. Ela não notava a involuntária atenção, focada apenas nos detalhes da viagem. Parecia querer decorar o mapa completo da linha, com as estações e seus nomes piscando acima de uma das portas de desembarque — Luas Jupiterianas, Júpiter Alto, Residencial Anéis, Mineração Ceres — cronometrando mentalmente o tempo entre cada parada. Décadas atrás, quando fiz esse trajeto no sentido contrário, realizei semelhante cálculo.
Eu percebia seu lábio se mexer ligeiramente, enquanto ela murmurava o nome das estações em um idioma que praticava apenas comigo. Era a primeira vez que viajava para tão longe, para o chamado “fim da linha”, como todo o resto da humanidade, espalhada ao longo das estrelas, chamava nosso próprio planeta natal.
Ela não parecia ligar para os terráqueos cada vez mais frequentes no transporte; afinal, eu já era um exemplar deles. Desde bebê, minha filha teve tempo suficiente de apertar minhas bochechas, me cutucar e puxar meu cabelo com uma curiosidade rara e um riso sincero.
Talvez por isso, só eu conseguia perceber os olhares daqueles terráqueos a encarando, imaginando o que pensavam secretamente. Chamavam-na mentalmente de “espacial”, “colona”? Ou termos piores?
“Você vai fugir? Vai ser um daqueles covardes que abandonam a Terra e geram aberrações e monstros pelo espaço?” Foi a última pergunta que meu pai me fez quando informei que aceitaria um trabalho permanente nas colônias agrícolas nos limites da Bolha Local. Nunca o respondi, nem sobre isso, nem sobre mais nada.
— Que cara é essa, pai? Está passando mal do estômago? — minha filha perguntou, finalmente me percebendo.
Apenas sorri e confirmei. Havia tomado várias pílulas para enjoo; mesmo assim, a viagem em hipervelocidade brincava com meu organismo. Seria uma boa desculpa para disfarçar meus sentimentos.
— Olha, não adianta reclamar! A ideia de vir junto foi sua! — ela continuou. Em algum momento na adolescência, minha filha escolheu parecer sempre nervosa.
— Não vou reclamar, nem vomitar em você. Apesar de que, pelo bebê que você foi, seria apenas uma devolução justa.
Ela soltou um som pelo nariz que era sua versão adolescente de mostrar uma espécie de revolta, como se nem uma palavra eu merecesse. Mas senti ela sorrindo discretamente. Ela também estava tensa.
— Mãe disse que era a primeira vez que você voltava para cá desde que partiu. Do que sente falta? — ela mudou de assunto abruptamente, para meu espanto. Não era comum ela se interessar por coisas pessoais sobre mim, pelo menos não nos últimos anos.
O que eu poderia dizer? Das noites bebendo e depois sofrendo com a ressaca? De simplesmente me sentar ao ar livre e sentir o Sol, insubstituível? Da amplitude do planeta todo, saber que em qualquer lugar seria possível respirar ou transitar, sem um domo ou uma área segura limitando-me ao intransponível?
Antes que eu pudesse responder, uma voz anunciou em vários idiomas que estávamos chegando à estação Terra. Na verdade, era uma estação espacial em algum ponto geoestacionário sobre o polo sul.
A partir dali, deveríamos pegar um transporte para alguma estação de pouso na Terra ou para qualquer uma das centenas de cidades-satélites que orbitavam o planeta.
Minha filha havia insistido para que eu alugasse um transporte particular e fôssemos direto para a Universidade, onde ela deveria fazer a matrícula. Ela queria encerrar isso antes mesmo de ir para o hotel, comer ou qualquer outro destino. Fez-me esse pedido como se a vida dela dependesse de se matricular antes de tudo, mesmo tendo semanas para o período se encerrar.
Enquanto a porta do Trem-Espacial se abria, segurei o ombro de minha filha.
— Jata, fique perto de mim — aconselhei-a. — A estação é lotada de pessoas de mão leve. Segure bem as malas e evite esses pontos de muvuca. — Busquei falar com um tom claro, que mostrasse a seriedade da situação.
Assim que levantamos dos assentos, posicionei-me atrás dela. Enquanto estávamos acomodados nos bancos, apenas os olhares a atingiam. Agora que andaríamos, eu temia alguma mão aleatória mais curiosa e desrespeitosa. Ela não pareceu se importar ou perceber a proteção adicional.
Ao passo que desembarcávamos, Jata tropeçou ao sair do transporte e pisar na plataforma. Ouvi-a exclamar alguma das gírias novas que eu não conhecia.
— Fiz esse trajeto diversas vezes na realidade virtual, mas não imaginei que fosse assim! — ela tentou falar em voz alta, inclinando o pescoço para trás para que eu pudesse ouvi-la entre outras pessoas conversando e entre vendedores oferecendo transportes ilegais, pacotes de viagem e produtos que eu nunca havia visto.
— O quê? Bem, olha, vamos descer quatro andares, até as empresas de aluguel de transporte. Certo?
Para minha satisfação, o caminho foi sem grandes incidentes.
Enquanto um funcionário da empresa das naves de transportes alugados fazia a última vistoria na lataria, para então me mandar assinar um documento de responsabilidades, uma visão completa do planeta apareceu pelo telhado transparente da estação. Pude finalmente responder à pergunta da minha filha.
— O mar.
— O que tem o mar? — ela fez uma careta que indicava que eu estava virando um velho maluco, trazendo assuntos aleatórios.
— Eu sinto falta do mar. Ou melhor, da praia. Antes de eu partir, eles estavam fechando todas as praias que restaram. Os níveis de contaminação no oceano estavam muito altos, algo assim. Iriam tentar um procedimento novo de limpeza e acharam melhor fechar tudo de vez para evitar efeitos colaterais. Foi essa a gota d’água que me fez decidir aceitar a oferta de emprego e me mudar.
Ela não respondeu nada e ficou encarando a enorme bola azul acima de nós. Duvidei que, a partir dessa distância astronômica, sua mente conseguisse perceber e entender o que era uma praia. A colônia em que ela nasceu mal possuía lagos, e nenhuma das colônias que ela já visitou possuía grandes extensões de água superficial.
…
O tráfego aéreo era tão ruim quanto eu lembrava, mas não foi difícil relembrar o trajeto até a Universidade, onde pousei em um dos grandes estacionamentos agora vazios, refletindo o restante do campus. Conseguia-se até mesmo ouvir as árvores balançando em um ambiente contemplativo.
Em época de matrícula, no meio das férias, o lugar mais parecia um enorme parque, com poucos alunos chegando pelos transportes públicos até os locais de inscrição, logo indo embora para festas ou passeios exploratórios pelos prédios. O sentimento nostálgico foi avassalador, como se eu nunca tivesse saído daquele lugar de fato, e todo o restante da minha vida fosse um agito temporário. Nada pelo campus parecia ter mudado; até mesmo as pinturas velhas e descascadas dos prédios ao redor pareciam eternas.
O sentimento para minha filha era o oposto. Ela não só não conhecia o local, como todo o planeta lhe era estranho, com uma sensação de… cheio, esmagador. Mesmo em um punhado de terra havia mais biodiversidade que na distante lua que chamávamos de lar. Pelo menos por enquanto.
Ela conferia novamente os documentos. Algo que já havia feito centenas de vezes em casa, em cada nave interestelar e depois no Trem-Espacial pelo sistema Solar. Quis lhe dizer que esses documentos eram apenas uma redundância formal. A identificação única, que cada um de nós tínhamos mesclada em nossa pele, conteria tudo necessário sobre nossa vida jurídica, mas ela já sabia disso.
— Bom, pai, estou indo lá! — ela informou, após uma longa respiração.
— Não quer mesmo minha companhia até lá?
— Claro que não!
— Certo. Mas o seu comunicador está ligado? Está no alto?
— Sim, pai… Não precisa ser tão preocupado — ela virou a orelha e mostrou um discreto comunicador próximo ao seu ouvido. — Até acoplei este ponto direto aqui.
— Bom, vou ficar esperando por aí. Se você decidir sair com o pessoal, me avisa que vou para o hotel e depois busco você. Evite caronas. — Eu sabia que a parte mais interessante de se matricular era conhecer os futuros colegas e confraternizar. Como eu sentia falta disso!
Ela saiu do carro decidida, indo em direção ao enorme prédio que seria parte de sua personalidade para sempre.
Aproveitei o tempo livre para ligar o rádio e ouvir as músicas locais. Aparentemente, mesmo quase três décadas não foram suficientes para mudar o gosto musical dos terráqueos. Absorto na música, espantei-me quando minha filha bateu no meu vidro, fazendo sinal para eu destrancar a pequena nave.
— A matrícula foi rápida — exclamei, jogando uma isca, querendo explorar como havia sido.
— Sim.
Imaginei que, pela sua resposta seca e expressão triste, as coisas não haviam sido muito boas. O que será que aconteceu? Enquanto eu abria a boca para perguntar, ela apenas me mandou partir logo, informando que estava cansada.
No caminho para o hotel, lembrei que havia um bom bar pela região. Sem avisar, desviei o trajeto e pousei em um estacionamento próximo.
— Onde estamos?
— Quero mostrar um lugar!
— Não, pai, vamos para o hotel, por favor.
Então apontei para um bar aberto, daqueles com várias cadeiras na calçada e um letreiro escrito à mão.
— Eu costumava tocar música aqui sexta-feira à noite. Vamos tomar umas cervejas locais. Você não vai impedir o seu pai desse prazer raro, né?
Talvez a situação inusitada de beber com o seu pai pela primeira vez, ou a curiosidade de saber onde eu passava minhas noites quando jovem, a fez sair do carro, arrastando os pés.
Assim que sentamos, mais uma vez minha filha chamou a atenção. Havia em uma mesa um grupo de quatro homens a encarando e cochichando entre si.
Busquei ignorá-los e me concentrar em uma cerveja gelada. Não era só estranho beber novamente na Terra, mas agora com minha filha, compartilhando parte do meu passado com ela.
Brindamos.
— Nossa, isso é horrível! – ela disse após mal encostar o copo na boca. Sua careta reforçava sua opinião.
— Você se acostuma. Se bem que talvez não seja bom você se acostumar muito.
Ela olhou ao redor.
— Então você trazia as garotas aqui?
— Sua mãe provavelmente faria exatamente essa pergunta. Mas sim, trazia. É um bom lugar. Fica muito mais cheio à noite, ou pelo menos ficava. Estou espantado que aqui ainda exista com o mesmo nome, apesar de o cardápio ter mudado completamente.
Agora os homens falavam mais alto, e conseguíamos ouvir algumas palavras como “experimentar”, “exótica”. Minha vontade era de levantar-me, responder, socar. Como se percebesse meu nervosismo, minha filha me encarou, assustada. Ela sussurrou alguma coisa triste, mas mal consegui ouvir.
— Olha filha, entendo que a universidade concedeu uma excelente bolsa. Mas você pode tentar entrar em outras. Em outros lugares, sabe? Não precisa ter pressa. Você sabe disso, né?
— Talvez, pai, vou pensar. Mas o programa é muito bom, não é só pela bolsa. Aqui foi um dos primeiros lugares a se aprofundar na Meteorologia Estelar, sabe que sempre fui fascinada no tema.
— Sim, lembro que com oito anos já sabia a classe da maioria das estrelas de todo nosso quadrante. Não sei de onde puxou isso. Então tudo bem, mas não se force muito. Estaremos sempre em casa de qualquer modo.
…
Quando Jata me ligou, eu automaticamente iria informar que sua mãe não estava. Mas ela começou a conversa direcionada a mim, falando que desejava me mostrar alguma coisa. Escondi a vergonha do meu quase erro e mostrei minha curiosidade.
— Você não sabe onde estou! – ela disse realmente empolgada.
A câmera estava bastante próxima de seu rosto, de modo que eu não conseguia ver a paisagem ao redor. Mas estranhei que ela estivesse com enormes óculos escuros e um chapéu preto que descia e cobria boa parte do seu rosto.
— Sem palpites. Onde?
— Na praia — ela afastou a câmera e mostrou a areia branca, o oceano ao fundo e vários quiosques vazios. — É a primeira vez que venho!
Consegui ver que ela estava inclusive com mangas compridas, enquanto rodopiava para me mostrar uma vista panorâmica.
— E como está aí? Você está toda blindada! Não se acostumou com o Sol? — eu perguntei descontraído.
— É, não. Estou sem protetor solar para mim, sabe como é.
Sua resposta foi um pouco tímida. Entendi que sua pele e cabelo poderiam ser muito mais sensíveis do que a princípio pensei. Os cremes e protetores especiais para forasteiros eram muito caros e difíceis de encontrar, pois cada colônia possuía um biotipo diferente, e eram poucos que visitavam a Terra. Então os produtos eram quase artesanais, feitos por encomenda. Fiz uma anotação mental de talvez enviar mais dinheiro para ela, pois sempre foi teimosa quanto a pedir ajuda financeira.
— Mas o melhor é que descobri que o acesso ao mar está liberado. Os projetos de geoengenharia nanobótica mequiana foram mais rápidos do que o cronograma planejado, sabe como é, o projeto tem uma inteligência de retroalimentação que nem mesmo os inventores pensaram ser tão eficiente — ela continuou dizendo, cortando meu devaneio.
Poucos meses na universidade e ela já estava falando termos como “geoengenharia nanobótica mequiana” e “inteligência de retroalimentação”, seja lá o que isso queria dizer.
— Gostou da famosa água salgada terráquea? — preferi falar sobre natação.
— Não entrei. E era isso que queria falar. Que tal se você e mãe vierem aqui e entrarmos todos juntos? O que acha?
Minhas próximas férias seriam daqui a quase um ano, e a partir daquele momento comecei a contar cada minuto. Fiquei empolgado com a possibilidade de visitar o mar com minha família; seria uma experiência única, um sentimento que até então eu não conseguia imaginar.
— Com certeza!
— Que bom, agora preciso desligar. Beijos!
…
Nossa ansiedade com essa viagem só aumentou com o passar do tempo. Costumávamos viajar bastante quando Jata era criança, para lugares distantes e desconhecidos dos circuitos habituais, em um quadrante da galáxia onde colônias mais ousadas ainda estavam sendo inauguradas.
Mas se pudesse escolher, Jata sempre preferiria ir para um pequeno planeta chamado Ormuz e suas enormes cachoeiras gigantescas, apesar de serem de metano e ácidas. Que ela escolhesse uma cidade litorânea perto de uma serra, onde pudesse desfrutar não só do mar, mas de várias quedas de água — dessa vez próprias para banho — era esperado. Mas a paisagem era muito mais bonita do que eu lembrava ser possível na Terra.
Eu estava sentado na sala, esperando minha esposa e filha se arrumarem para irmos para a areia, quando comecei a lembrar de Jata chamando-me para essa viagem à praia, toda coberta e protegida. Eu estava apenas com um calção, imaginando se não deveria pôr uma camisa ou algo para parecer menos exposto e não destoar do restante da minha família. Ou será que eu estava tentando encontrar uma desculpa para esconder agora meu corpo mais velho, disfarçar minha barriga que finalmente havia crescido descontrolada, dentre outras marcas da idade? Peguei-me surpreso pensando em tal timidez na minha idade.
Enquanto eu ainda me decidia, minha filha apareceu. Vestia apenas um biquíni e um chapéu de crochê que servia mais como acessório de moda do que proteção.
— Pai, a nave está destrancada? Esqueci algo no banco.
— Sim, está sim. — E então comentei: — Que bom que conseguiu um protetor solar para você.
Ela estava dentro do carro, distraída, pois respondeu de forma descontraída.
— Que protetor solar, pai? Ah, ufa, encontrei a maquiagem à prova d’água!
Ela voltou com pressa para o banheiro. Quando saiu, havia demarcado sua pele bem no estilo das colônias, acentuando quase todos os detalhes que justamente a diferenciavam de mim e de outros terráqueos. Até mesmo a cor do biquíni era um contraste perfeito com a cor da sua pele, tão mais resistente que a minha. Lembrei finalmente que a estrela que irradiava sobre nossa colônia, diferente da maioria das outras, era muito mais forte que o Sol. Agora que eu estava no planeta, isso era tão óbvio.
Talvez aquela tenha sido a primeira vez que realmente eu tenha visto minha filha crescida, invertendo os papéis, quando ela mais ensinava a mim do que eu a ela. Olhei para meu calção e para minha barriga, comparando minha postura com a de minha filha. Um ano havia se passado desde aquela ligação que nos convidava para cá. Dei de ombros.
— Jata, me faz um favor? Você pode passar esse simples protetor aqui nas minhas costas?
Esse é um conto curto, e nasceu também para uma seleção para uma revista (e não foi selecionado!). Minha ideia era falar um pouco sobre o retorno para casa, após um grande tempo longe. Isso pois eu, particularmente, não moro mais na cidade em que nasci, e para mim é cada vez mais estranho voltar para lá. Usei essa mesma premissa para outro conto, "A casa com um limoeiro", que talvez eu até goste mais do que esse.