Lamparinas e Gardênias
16 de janeiro de 2024Fanuskar prossegue, cansado, a brisa úmida lhe expirando o rosto.
Às vezes, encara as rígidas nuvens no céu, que descem à terra em uma cinzenta neblina. A queda da Tempestade é imprevisível. É mais simples contar as lamparinas que restam acender - cerca de cem até o Portão Sul, e precisamente três mil e quinhentas até o Portão Leste.
Seu passo é monótono; o peso da bota esmagando seixos pela trilha que serpenteia o colossal muro de cal e pedra, de onde pendem tão simétricas as lamparinas, como flores de ferro e óxido.
Ele não sabe dizer quantas acende por dia, mas lhe parece certo que chegará ao próximo portão até a noite.
Sua conta é regressiva, porque do contrário, não conseguiria continuar.
Cada fagulha da pederneira lhe queima os dedos, o atrito no sílex provoca bolhas, o bulbo de vidro lhe arranha a pele. Há pus em seus pés. O mais difícil, no entanto, é o preparo do combustível.
A mistura é simples: um pouco de seu próprio sangue – outro sangue não serviria -, misturado com qualquer óleo; de nozes, peixes, querosene, não importa. Com o tempo, Fanuskar aprendeu que drenar o seu sangue por um corte na coxa dói menos.
Quando finalmente o brilho das lamparinas supera os raios do Sol poente, ele alcança o imponente Portão Sul. Seus olhos deslizam sobre o poema milenar esculpido no pórtico, palavras e estrofes familiares.
Este é o império Manah, sob a bênção do Fogo,
Chamas que desafiam lobos na escuridão,
Que consomem vis, sem hesitação
E em noites gélidas, ofertam calor em devoção.
Chamas, guias divinos, para viajantes perdidos,
Nas fronteiras, tochas eternas, luzes em comunhão.
Bem-vindo, onde o Fogo é guardião.
Um dia, ele se orgulhou ao ler aquelas estrofes. Um jovem destinado a manter chamas que nunca deveriam extinguir-se.
Fanuskar estala suas costas cansadas, coça a ferida na coxa. “Como eu era tolo”, murmura.
...
Cada traço de Zhi-zi a denunciava como estrangeira, mas foi ao tentar saldar a conta do jantar com um mero ramo de folhas viçosas, que a estalajadeira teve a certeza.
“Veja bem, querida, não sei na sua terra, mas aqui usamos dinheiro”, diz a mulher, tentando manter um ar sério, ainda que um tanto constrangida.
Zhi-zi a encara entristecida.
“Não pertenço a terra alguma”.
A estalajadeira, hesitante, estende a mão e apanha a planta. Alguma parte dela sente a necessidade de recusar o pagamento, outra parte cede à curiosidade.
Os ombros de Zhi-zi relaxam.
"Isto é Manjericão Selvagem. Perfeito para temperar suas refeições”. Sua simpatia e sotaque melodioso impedem que a taverneira se sinta ofendida com a implicação.
"Está bem, então." A estalajadeira quase vira as costas, quando Zhi-zi prossegue:
"Esta erva veio de muito longe. Não vai criar raízes, a menos que se sinta acolhida."
"O quê?". Uma pausa. A estalajadeira percebe que Zhi-zi procura algo em sua bolsa.
"Aqui!". Zhi-zi balança no ar alguns pergaminhos. "São histórias das terras dessa erva. Se você ler para ele ocasionalmente, ele se sentirá em casa”.
A boca da mulher se abre, mas suas palavras se reviram na garganta. Melhor mudar de assunto.
"Irá passar mais uma noite aqui?".
“Não”. Zhi-zi é enfática.
"Você olhou o céu recentemente?". As linhas do rosto da estalajadeira estão endurecidas.
O olhar de Zhi-zi cruza para além da janela, onde vê uma paisagem escurecida por um manto de duras nuvens roxas.
"Sim, parece que vai chover para valer". Responde, descontraída.
"Não é uma chuva comum. É a Tempestade, uma maldição!”. A mulher parece mais cansada do que ameaçadora. “Em alguns dias devo ir para Manah, talvez o único lugar seguro. Você pode dormir aqui, e depois ir comigo”.
Zhi-zi, sem perceber, fecha os olhos. Sente os pequenos brotos em seus pés querendo atravessar os sapatos e se fincarem no solo, espalhar raízes, abraçar a argila úmida.
As árvores lá fora sussurram sobre quão bom é o clima, solos nutridos e promessas de chuva.
Mesmo se a Tempestade é uma maldição, ela deverá partir. Tem a sua própria.
Quando abre os olhos, depara-se com a estalajadeira, cuja expressão é um misto de zelo e perplexidade.
“Não posso ficar. Já estou tempo demais aqui”.
....
Uma rajada súbita projeta Fanuskar contra o muro. À frente, as lamparinas trêmulam, algumas se extinguem.
Orgulhoso, contempla a resistência das chamas que ficaram para trás, fantasmagoricamente imóveis diante da fúria do vento.
A magia jovem das lamparinas recém-acendidas é forte. Se fosse uma rajada comum, elas bailariam sob a pressão atmosférica. No entanto, este é um vento sobrenatural, um embate de magias.
Fanuskar teme por aquelas lamparinas que restam, acendidas há muito tempo, enfraquecidas.
Nunca precisou fazer o percurso tão rápido. Sua coxa lateja, o sangue recentemente extraído - tão constantemente, tão apressadamente - o enfraquece.
Mesmo assim, avança, amparado no muro, com seu próprio peso lhe esmagando em resposta ao vendaval. Quando se aproxima de uma lamparina, extingue o fogo antigo, recolhe o combustível da ânfora, abriga as faíscas da pederneira com seu corpo, e risca o sílex, uma, duas, várias vezes, até a chama reavivar.
Constantemente, fala consigo. “Restam apenas duas mil”. “Faltam mil”. “Quinhentas...”.
Num instante de rendição involuntária, precedida por um calafrio e latejar em toda sua perna, o corpo de Fanuskar cede.
Primeiro, a perna não responde mais. Depois, há a percepção de que irá cair. Estende as mãos, aparando o encontro do seu rosto com o chão.
Então vem o depois: deitado, pensa como seria fácil dormir, em como acordaria revigorado, para então ir embora, nunca mais extrair seu próprio sangue.
Recorda-se das caravanas de desalojados, aglomerando-se nas praças do império Manah a cada verão, como andorinhas imigrantes.
“Desgraçados. Não devo nada a eles, a ninguém”.
Pálido e com frio, abraça o cansaço, cerrando os olhos.
...
Zhi-zi sentia a neblina como um prenúncio sobrenatural.
Os dias anteriores já se vestiam de penumbra, com o Sol nublado pelas estranhas nuvens roxas. No entanto, agora uma escuridão absoluta a engole por todas as direções, como se houvesse dissipado cada coisa ou substância no mundo em névoa e frio, restando só ela.
Não havia mais rochas e galhos para tropeçar. Até o sussurro das árvores silenciou, substituído pelo silvo do vento e por trovões distantes.
Zhi-zi não era estranha a tempestades. Caminhou por desertos cujo vento carregava cristais afiados como flechas. Cruzou cordilheiras cujo ar gélido solidificava a própria alma. Contemplara céus eletrizados em cores hipnóticas e alucinógenas.
Aquilo era diferente, pensa. Antigo, profundo.
Um primeiro pingo atinge-lhe o ombro, pesado e denso. Logo em seguida, outro alcança sua mão. E então mais outro, e outro, até a chuva tornar-se incessante, uma enxurrada de gotas raivosas.
Em meio à cortina de água, Zhi-zi confunde um uivo com um trovão, até sentir uma mandíbula raspando-lhe a pele, deixando marcas de sangue. Com a visão encharcarda, vê uma sombra que saltou-lhe pelas costas adentrar a neblina.
A respiração dela se esvazia por um perfeito instante, para então voltar com força.
Em um gesto de urgência, agarra algumas sementes de sua bolsa e sussurra uma antiga história apressada de santos e dragões. Das sementes brota uma espada-de-são-jorge, pequena como um punhal.
Quando uma segunda sombra emerge à frente, a garota brande a planta, retalhando-a. No lugar, outras surgem. Um enxame espreitando-a de todos os ângulos.
Não seria uma luta difícil, as sombras parecem fracas, mas aquele era um lugar de desgraça, e Zhi-zi tinha sua própria condenação. Conforme a chuva se adensa, bulbos, rizomas e raízes forçam sua saída de dentro de seu corpo, sua maldição mais forte e incontrolável.
Ela precisa se movimentar. E rápido.
Um jogo se iniciou, uma dança entre resistência e investidas. As sombras dançam à sua volta, provocando-a, atrasando-a, divertindo-se com a armadilha.
Zhi-zi não sabe quanto tempo havia passado. Sente um gosto de sangue escorrer pela boca, de alguma garra que acabara de lhe atingir a face. Que parte do corpo dela não estava ferida? Luta contra a morte, sombra após sombra... Incansáveis, infinitas...
Pontos distantes de um brilho vermelho capturam a atenção de Zhi-zi, retirando-a de seu devaneio. Ela se esforça para lá, a luz atraindo-a como uma mariposa.
Está próxima a um enorme muro, quando o calor luminoso somado das lamparinas parece se esticar e apanhá-la, envolvê-la, de modo a restar só ela, o muro e... um homem esquelético caído no chão, dormindo ao lado de uma ânfora.
....
Desde que se recorda, a maldição de Zhi-zi se revelava como um impulso incontrolável de suas raízes quererem abraçar o solo. Não podia ficar parada; não muito tempo. Sempre foi assim.
Zhi-zi retira as botinas e aguarda a sensação, a inquietação de suas raízes. Não sente nada.
Enterra os pés nus no chão, entrega-se à terra. Nenhuma dor, nem mesmo uma coceira.
Seu olhar, curioso, pousa nas lamparinas. Manah, pensou, talvez fosse um local imune não apenas às neblinas assassinas, mas a outras maldições também.
Por um momento, observa o homem. Fitou a pederneira ainda agarrada em seu punho, a ânfora encostada às suas costas, a mancha de sangue transbordando pela calça. Agacha-se ao lado dele e, junto ao rosto envelhecido, enterra algumas sementes.
Murmura, em voz terna, histórias sobre encontros e desencontros. Alegra-se ao perceber que sua magia não se extinguiu, só a parte ruim.
Das sementes, desabrocham gardênias brancas.
...
"Que aroma doce é esse?" é o primeiro pensamento de Fanuskar ao despertar. Sua consciência emerge lentamente. O ombro dói. A perna espasma. A visão está turva. Ele estava na trilha do Portão Leste – isso não dava para esquecer. Mas o que aconteceu?
Em pequenas imagens que cintilam em sua mente, ele se recorda das rajadas de vento, da exaustão por noites não dormidas. Nada que justificasse esse aroma. Seu corpo parece ainda um pouco lento, resistindo a se erguer. De alguma forma, o cheiro floral parece lhe infundir energia, exalando vida.
Finalmente, consegue sentar-se, abre os olhos, com a vista embaçada e depara-se com a trilha... transformada. Preenchida. O que são aqueles pontos brancos?
Flores brancas, percebe finalmente.
Fanuskar se levanta e examina as plantas. Estavam frescas, novas. Tinha a certeza de que nunca viu flores assim ao longo das trilhas, e, mais certeza ainda, de que não existiam naquele mesmo lugar na noite anterior.
Sem medo, toca as pétalas suaves. O contato alivia a dor em sua mão, reduz as bolhas das queimaduras.
Uma ideia surge e, com delicadeza, colhe algumas pétalas. Desliza-as sobre a ferida em sua coxa. A dor cessa, o profundo corte se cicatriza, liso como porcelana. Sua pele volta a ter cor.
Consegue juntar uma boa quantidade de pétalas, pacientemente para não ferir as flores, reservando parte da ânfora para armazenar o que conseguiu colher.
Fanuskar, se olhasse o chão só por um pouco mais de tempo, perceberia que das flores parte uma trilha de pegadas de um pé pequeno e descalço. Porém, olha para cima, para as densas nuvens roxas que ainda perduram.
Ele ajeita a ânfora, conferindo o combustível. Afinal, restavam trezentas lamparinas.
Esse é um conto longo, e um pouco diferente. Fazia um tempo, quando o escrevi, que não havia escrito nada em fantasia. Pensei em escrever algo sobre uma própria atividade tão rotineira, e isso perder o sentido a longo prazo para a própria pessoa, mas o sentimento ser renovado, se pelo menos alguém se mostrar beneficiado. Queria que esse encontro fosse anônimo, passageiro, mais por sinais que algo concreto. Como são os encontros na vida real.