Fronteiras
5 de fevereiro de 2019Não mais reconheço essa cidade, onde tanto vivi. As ruas, avenidas e superquadras são as mesmas. A cor e o contorno do lago não mudaram. Mas vejo uma tempestade vindo. E na ventania que a precede, levantam-se cinzas e fragmentos de papel picado, com miúdas letras apagadas, amontoando-se no meio-fio das calçadas.
Quando embarquei no avião transoceânico, não pensava em contrabando. Migrei como turista, encantando-me pelo mundo exterior. Já nos aeroportos de outros países, vi bancas com revistas e livros de bolso à venda, pessoas segurando papéis e debatendo sobre eles. Havia um verbo para o que faziam com esses escritos. Verbo não mais utilizado nesta minha cidade.
Quando desembarquei em meu retorno, o agente aeroportuário calmamente abriu minhas malas e enfiou as mãos enluvadas em meus bolsos. Pediu-me que tirasse os sapatos, os óculos, o cinto. Atrás da fivela descobriu o desenho do Verbo esquecido. Repreendeu-me: pensou que não o encontraríamos?
Quando cheguei à cidade pela primeira vez, deveria ter uns 20 e poucos anos. Dirigi a esmo pelas ruas largas e arborizadas e perdi-me nas “tesourinhas”, imaginando a vida que teria ali. Era recém-formado, e o emprego novo prometia grandes conquistas e responsabilidades. Certamente, facilmente me acostumei com o ar mais puro daquele local, o Sol vivo e presente. Na grande metrópole em que nasci, entre o caos e a desolação, sentia apenas o cheiro de monóxido de carbono, dióxido de nitrogênio e ureia. Meus olhos, ofuscados pela perpétua névoa, viam apenas o monocromático e as sombras.
Nos outros países, o céu é mais azul. As árvores são mais verdes. A água é mais refrescante. Nas praças observei crianças e cachorros correndo livremente, alegres e comendo doces. Os casais se sentam em bancos e se abraçam. Havia uma palavra para tudo o que é natural, que brota do solo, do ar, do mar. Que palavra era essa, que não existe mais deste lado da fronteira?
Não mais reconheço essa cidade, onde tanto vivi. Os parques têm o mesmo nome, os canteiros nas calçadas o mesmo formato quadrado. Mas não há nada neles. Apenas concreto. Vejo uma tempestade vindo. E na ventania que a precede, levantam-se cinzas e fragmentos de flores e caules, com miúdas poeiras de terra vermelha, amontoando-se no meio-fio das calçadas.
O meu desembarque foi bastante fácil: o agente aeroportuário carimbou meu passaporte e solicitou que eu abrisse minha mochila. Verificou todas as pastas. Pediu-me que abrisse a boca e olhou por baixo da minha língua e por trás dos meus dentes. Em minha garganta, viu amarrada a palavra esquecida. Aborreceu-se: supôs que não a encontraríamos?
Não sei ainda se o amadurecimento vem em fases, por meio de tombos, beliscões e arrependimentos; ou se ocorre em uma única e derradeira vez: abruptamente deixamos de ser crianças. Lembro-me dos enterros de meus avós, um a um. Recordo a comoção e o cortejo popular, televisionado com cuidado quando personalidades notáveis faleciam.
Havia também nomes de lugares – escolas, bibliotecas, pontes – batizadas em homenagem a antigos homens e mulheres, não mais presentes no mundo material.
Nos outros países, havia o rosto de pessoas estampado nas moedas. Existiam estátuas de ferro, de mármore e granito em grandes cruzamentos viários. Visitei também lugares pitorescos, de grama aparada e flores dispostas cuidadosamente ao lado de lápides ornamentadas. Diante delas, parentes sentavam-se silenciosamente. Em outros países, pessoas se reuniam circundando caixões, ou se pintavam de caveiras e festejavam pelas ruas. O que elas faziam, afinal? Existiam vocábulos para essa relação entre vivos e mortos, entre presente e passado. Eu já soube.
Não mais reconheço essa cidade, onde tanto vivi. Penso que atravessei uma fronteira além dos limites meramente cartográficos. Aquelas são as subidas que sempre existiram, as Serras que abraçam o urbano são de mesma silhueta. Mas na ventania que precede a tempestade vindoura, levantam-se cinzas e mais cinzas, sopradas das chaminés de dezenas de crematórios, amontoando-se no meio-fio das calçadas.
Quando novamente desembarquei, o agente aeroportuário foi respeitoso. Saudou-me como cidadão de seu país e revistou-me silenciosamente. Olhou minha bagagem, minhas roupas. Passei por cães farejadores. Quando retiraram meu sangue, viram em lâminas minhas hemácias e glóbulos formando os vocábulos perdidos. Reprovou-me: pensou que não os encontraríamos?
Esse é um texto mais abstrato, e surgiu em uma época de eleição no Brasil, quando havia um embate muito grande entre Bolsonaro, um presidente de ultra direita, e Haddad, no espectro da esquerda. Era quase certo que Bolsonaro venceria. Então, creio que a maioria das pessoas estavam em um clima distópico.