Um Filho Chamado Gulliver
17 de fevereiro de 2019Sempre antes de dormir, meu pai contava-me uma historinha curta, algum clássico da literatura infantil, e encerrava a noite chamando-me de “Gulliver de Lilliput”, fazendo um afago e apagando as luzes. Nunca entendi quem era Gulliver, já que ele nunca era um personagem das histórias contadas.
Na noite seguinte, pedia-lhe para me contar a história de Gulliver. Fazia parte de um mistério. Queria entender por que meu pai me chamava assim.
Mas ele nunca a narrava, sempre dizia que em uma próxima noite o faria. Neste ínterim, entreteve-me com “O Pequeno Polegar”, “Aladdin”, o “Flautista de Hamelin” e tantas outras. Nunca a que eu mais desejava: a do próprio Gulliver de Lilliput.
Imaginei que meu pai não fosse uma pessoa versada, nem literária, de modo que não conseguia resumir uma história maior como talvez fosse a de Gulliver, recorrendo, portanto, a histórias próprias para crianças. Seja como for, noite após noite, esperava a história.
Até que, por fim, cresci. Não havia mais histórias antes de dormir.
Anos mais tarde, a caminho da Universidade, comprei o livro "As Viagens de Gulliver" em uma daquelas feirinhas de rua. Era um livro com capa dura e vermelha, bem simples e surrado.
Carreguei-o para a estante do quarto, para a mesa de jantar, para o sofá da sala de estar. Decorei o tamanho do livro, seu peso, a espessura da capa, o brilho do bordado do título. Mas nunca o abri.
Depois me formei, mudei de cidade. Já havia deixado de carregar o livro há um tempo e nunca o trouxe para minha nova casa.
Um dia qualquer, num domingo sem maior importância, e com o som da garoa a salpicar nas janelas, cochilei. Tive um sonho estranho.
Sonhei que possuía um filho, já adulto, e este havia naufragado. Ficou dias agarrado a um pedaço de madeira, até as correntes o levarem para uma costa. Acompanhei-lhe à distância, como um narrador observador que nada podia fazer, vendo-o estirado em uma praia de uma ilha exótica até ser encontrado por homens e mulheres diminutos.
Eles o amarraram e apresentaram-no ao Rei. Presenciei tudo, impotente: meu filho, um gigante, tornando-se protegido e amado pela população enquanto fosse útil. Mas, ao se recusar a ser cruel em uma guerra entre os anões, foi perseguido, preso, visto como uma aberração. Teve que voltar à deriva do mar, exilado para novas terras.
Poderia ser um sonho qualquer. Mas acordei com areia em meus pés e um forte odor de maresia pela casa, que rangia como um barco. Acordei com um forte sentimento de orgulho e receio por um filho sonhado.
À noite, minha esposa retornou e foi direto para o banheiro. Estávamos preocupados, fazia dias que ela apresentava um estranho enjoo. Quando ela saiu de lá, vi em seus olhos uma expressão que nunca presenciei. Ela anunciou-me que estava grávida.
A história perdida então veio à luz. Apoiei-me próximo à barriga de minha esposa e sussurrei: “olá, Gulliver de Lilliput”.
Esse é um texto mais abstrato, e mais pessoal. O meu pai costumava me chamar de "Guilliver", então eu gostava dessa história. Pensei em usar isso como premissa para algum conto, e surgiu esse. Não é um conto muito para fora, para leitores, mas algo mais interno a mim mesmo.