O Filho do Barão
13 de dezembro de 2019Atenção: Conto de Terror, pode conter trechos desagradáveis.
Esse conto foi publicado, com leves adaptações, na revista Mysterio, nº 5, em junho de 2021. @revistamysterioretro
A mãe pressionava o bebê contra os seios, ignorando os olhares das parteiras. Era seu filho, e ninguém poderia impedi-la de amamentar. A parteira e suas duas aprendizes mantinham-se silenciosas, com os olhares vítreos e corpos enrijecidos. A mais velha, já de cabelos brancos e rosto enrugado, rezou silenciosamente para si mesma, até por fim conseguir rumorejar, fracamente:
— Minha senhora… o bebê não está entre nós, está com Deus.
— Claro que não. Tu não vês? Minha criança está a se alimentar! — respondeu sorridente a mãe, olhando com ternura para seu filho, acariciando sua nuca careca.
Nenhuma das três parteiras sabia o que fazer. Precisou-se de alguns, vários, minutos entorpecidos pela doce cantiga murmurada pela mãe, até que, por fim, a parteira mais velha disse em voz alta, com uma mentirosa animação:
— Bem, podemos chamar o senhor Barão para ver o herdeiro?
As outras duas mulheres ficaram imediatamente aliviadas com a astúcia da mestra. Decerto, o homem haveria de parar com aquela loucura.
— Então, vai — ordenou a mais velha para uma das aprendizes, depois do aceno de cabeça de sua patroa. — Vai, diacho!
O Barão era um homem alto e gordo, com uma espessa barba branca. Rudemente, entrou no quarto, com o seu cachimbo na boca. O cheiro da madeira molhada pela chuva e o cheiro do sangue do parto misturaram-se com o recém-chegado odor amargo do fumo. Olhou o bebê e a mulher placidamente, sem mudar nenhuma expressão em seu rosto. Contemplou a cena por pelo menos três longas tragadas. A ansiedade das parteiras era visível.
Na primeira tragada, o Barão percebeu, por si, que o bebê deveria estar morto. Sua boca já cinza não se mexia, nem mesmo encostado no farto seio de sua esposa, abastecido de leite. Sua cabecinha pendia de lado, solta. Não chorava, nem tampouco parecia respirar.
Na segunda tragada, constatou, pelo olhar doce e gestos delicados de sua esposa, que o trauma era irreversível. Lembrou de suas incursões nos campos paraguaios e reviu a loucura no olhar dos inimigos, incrédulos do massacre que sofriam.
Na terceira tragada, refletiu no que poderia fazer. Sua esposa era jovem, poderia ter outros filhos — para ele, aquilo era óbvio. Era só mais uma criança. Mas conhecia sua esposa, e pensou que ela era fraca. Não poderia apelar para a razão. Achou uma solução.
— Vamos deixar minha esposa a sós com meu filho — ordenou o homem, sem desviar o olhar da cena.
Todas imediatamente acataram o comando. O trabalho delas estava feito, pensaram. Ao sair do quarto não teriam mais responsabilidade.
Logo à porta, o Barão encarou a parteira mais velha.
— De onde tu és? — perguntou.
— Sou da Vila dos Tucanos, senhor — a mulher respondeu acanhada, temendo ser culpada pelo parto infeliz.
— E há recém-nascidos homens nesta vila?
O coração da parteira acelerou. Temeu para onde aquela conversa poderia rumar. Mas seria pior mentir para seu patrão.
— Sim. Existem. Eu mesma fiz o parto de dois, neste mês.
— Ótimo. Vai ter com o Cocheiro, que me é homem de confiança. Explica a situação, e faças o que tem que ser feito. Pegue o mais saudável e parecido com meu filho morto. O Cocheiro levará moedas e estará armado. É tua responsabilidade, entendes a situação?
— Sim, senhor Barão.
***
Uma inesperada tempestade começou a assolar a fazenda. O caminho dali até a Vila dos Tucanos não era fácil, nem mesmo em dias secos e sob o Sol. Demorou toda a madrugada para a parteira retornar ao casarão.
A mulher estava encharcada, com as botas cheias de lama. Sabia que sujaria a casa, mas a situação era mais urgente que aquelas preocupações tolas. Ela havia adentrado a sala com o Cocheiro e com outro homem absurdamente velho, sem bebê algum.
O calor vindo da enorme lareira era reconfortante, com aquela calma luz vermelha, o barulho da lenha crepitando, o ar quente soprando o rosto. De pé, no meio da sala, estava o Barão. E ele estava enfurecido.
— Demoraste! Onde está o bebê que te pedi? Quem é este velho ao teu lado?
A parteira respondeu segura de si:
— Senhor, desculpe a demora. No caminho pensei em uma melhor solução. Este velho é conhecido na vila e arredores como o Xamã Azul.
— Um homem que vive metido no mato, com ervas falsas e truques de ladrão — exclamou o Barão, irritado pela situação.
— Não, senhor. Sua magia é real. Peça para ele subir, e o senhor verá — A mulher realmente parecia certa sobre o que dizia.
O Barão encarou o Cocheiro, que assentiu calmamente:
— Também duvidei, mas tive provas. Pode dar certo, patrão.
— Bem. Qual o teu preço? É possível trazer à vida o bebê? Como farás? — O Barão perguntou encarando o Xamã Azul. Observou que o apelido devia vir de uma mancha estranhamente azulada, em forma de galo, em seu pescoço.
— Mas é claro que é possível. Com certos ajustes, tudo é possível. Ele terá vida longa, poderá lhe dar netos. Como farei, não importa. Mas o preço, para o senhor, é quinhentas moedas. O preço para sua esposa, será a vida.
O Barão pôs o cachimbo na boca. Ter netos, era importante. O preço em moedas, não era nada abusivo, uma migalha, e poderia tomar outra esposa no futuro. Pensando melhor, manter seu próprio filho era uma opção melhor do que viver com um bebê roubado, de sangue desconhecido.
— Suba agora, velho. Diga à minha mulher que tu és um médico.
E assim ele foi.
O Barão e os empregados nada ouviram vindo do quarto. Seja o que o estranho homem havia dito para a mulher, ou o que fez com ela, ninguém percebeu. Mas, todos se surpreenderam quando ouviram um choro de bebê, vindo lá do alto. Até mesmo a parteira, que confiou na magia do Xamã, pareceu surpresa.
O Barão não esperou muito. Encostou a mão no ombro do cocheiro e cochichou:
— Somos tementes a Deus nesta casa. Se descobrirem que utilizei magia negra e pacto com o diabo, minha reputação se manchará. Mate a parteira e o Xamã.
O Barão mal terminou a frase, e o cocheiro apontou a pistola para a parteira. De costas, ela nem percebeu a bala atravessando sua vida.
Quando o Cocheiro abriu a porta do quarto, viu a esposa do Barão morta. Não encontrou o velho mágico em local algum, mas a janela do quarto ainda estava trancada por dentro. Ele não saiu por ali.
Tampouco deve ter passado pelo corredor, pois teria sido visto e escutado. Os métodos do Xamã eram um mistério.
O Cocheiro abaixou a arma e observou o bebê, ainda envolto pelos zelosos braços da mãe, estendida fria e pálida em uma poltrona. O bebê mamava, expondo uma mancha estranhamente azulada, em forma de galo, em seu pescoço.
É engraçado, mas eu não gosto de escrever contos de terror. Havia uma época, na adolescência, em que eu lia mais contos de terror... haviam alguns na biblioteca de casa (no escritório de casa), e eram textos relativamente baratos em bancas de jornais. Mas, escrever, nunca foi minha prioridade. Mas, no website Recanto das Letras há um concurso de contos de terror, e é um concurso bem legal. Resolvi escrever esse texto para esse evento. É um texto em que eu tinha apenas o início na cabeça, e depois o conto foi desenrolando por si só.