Esperança em Detritos
Escrito em 29 de dezembro de 2021. Revisado em 19 de maio de 2025.Meu aniversário de doze anos caía no mesmo dia do Festival da Queda. Apesar do nome festivo, não era uma data alegre. Era um momento quase fúnebre: os adultos se reuniam, acendiam lanternas, abriam garrafas de licores e entoavam canções sobre mundos distantes.
A minha avó costumava chorar.
É por isso que não gosto de receber presentes em meu aniversário. Mesmo hoje, parece simplesmente errado. Mas naquele dia específico, eu gostei. O meu pai finalmente anunciou que me levaria à superfície.
Minha mãe ficou furiosa, discutiu. Ouvi-a desfiar sua longa lista de perigos: “animais peçonhentos não catalogados; queda de detritos radioativos e incandescentes; chuvas ácidas, tempestades de areia e fenômenos meteorológicos inomináveis; e a possibilidade certa e derradeira de se perder e morrer de fome ou frio”.
Ela sempre encerrava essa lista, já decorada por mim, com a frase: “não pertencemos e não somos bem-vindos aqui”.
Mas meu pai apenas sorriu e, como sempre, ela cedeu. O sorriso dele tinha o poder de apaziguar qualquer discussão.
Eu mesma preparei minha mochila. Separei a lanterna, alguns biscoitos duros feitos por minha avó e meu casaco térmico. Não esqueci o mais importante: meu amuleto.
Ganhara-o em outro aniversário. Meu pai dissera ser a peça mais importante de uma nave. Aventurar-se até as sucatas da Nave era um grande risco, então aquela peça devia ser mesmo especial, pois lembro do perigo que ele correu para encontrá-la. Cheguei a perguntar o nome, recordo sua empolgação ao me explicar, mas logo esqueci. É fácil esquecer o que não se entende, sobretudo na infância.
Não tornei a perguntar o que era realmente aquele objeto. Meu pai era respeitado por todos como engenheiro, consertando e montando equipamentos vitais. Não queria que me julgassem uma filha sem aptidão para mecânica, alguém incapaz de guardar nomes, manchando assim alguma honra hereditária.
Então, para mim, era apenas um amuleto.
Com os suprimentos prontos, partimos da abóbada que chamamos de lar, no coração da caverna que abriga nossa civilização. Seguimos por um longo túnel estreito, onde minerais nas paredes alternavam cores à nossa passagem – meu pai irradiava um azul calmo, eu, um laranja vívido. O brilho era reforçado por lâmpadas frias e opacas, simetricamente instaladas, mas o caminho, outrora liso pelo uso contínuo, agora era pouco frequentado, com a erosão lentamente retomando seu domínio e a poeira sedimentando sob nossos pés.
Devo dizer que, apesar da idade aparente, meu pai era ágil, agachando-se ou galgando degraus naturais com presteza. Talvez ele nem fosse tão velho assim, talvez hoje eu seja mais velha que ele era então. Continuamos a nos esgueirar pelos corredores, até uma luz estranha – pálida, a princípio tímida e difusa – banhar nosso caminho.
Eu sabia o que era; todos sabiam, mesmo os que jamais viram a superfície. A luz da estrela que este planeta orbitava, à qual nunca nos demos ao trabalho de nomear. Não por ingratidão – era nossa maior fonte de energia. Mas para nossa antiga sociedade, perdida num planeta anônimo, a natureza era vista com pragmatismo impessoal. Certamente, em algum outro lugar, aquela estrela teria um nome composto por letras e números, como num catálogo.
Perto da abertura de onde irradiava a luz, intensificou-se, fazendo meus olhos arderem e lacrimejarem. Meu pai, com o sorriso constante, percebeu prontamente me estendeu a máscara de proteção.
Era um simples visor de vidro escuro preso por um elástico. Ao passá-lo pela cabeça e ajustá-lo sobre os olhos, o elástico repuxou um tufo do meu cabelo, provocando uma fisgada ardida. Endireitei os ombros no mesmo instante, piscando para afastar as lágrimas de dor. Não era hora de mostrar fraqueza.
Ele assentiu, talvez satisfeito com minha presteza ou simplesmente sem notar o pequeno incidente, e apontou para o caminho à frente.
— A subida é logo após aquela curva, por um poço. A luz será ainda mais impiedosa lá em cima. Deixe seus olhos se adaptarem gradualmente, está bem?
Não demorou para o caminho, até então horizontal, tornar-se abruptamente vertical. Ganchos nas paredes formavam degraus, junto a uma série de cordas e uma pequena plataforma elevatória. Meu pai me mandou subir ali; recusei.
— Nem pensar! — protestei, a voz saindo mais determinada do que eu mesma esperava. — Subo pelos degraus. Não preciso de ajuda.
Ele me analisou por um momento, com um brilho divertido nos olhos.
— Teimosa. Está bem, pelos degraus. Mas com uma condição. Vou prender esta corda em você. — Ele ergueu a corda e, antes que eu pudesse sequer pensar em argumentar contra a ideia de ser amarrada, ele se inclinou e acrescentou num sussurro conspiratório:
— E nem uma palavra à sua mãe sobre esta nossa aventura na vertical, certo? Um segredo nosso.
Senti um arrepio de excitação. Um segredo! A palavra mágica. De repente, a corda não era mais um símbolo de dependência, mas o elo de um pacto secreto com meu pai. Subimos, eu desajeitada, ele com espantosa habilidade.
A primeira visão da superfície me roubou o fôlego – se pela vastidão ou pelo esforço da escalada, não saberia dizer. Tudo parecia... impossível. Nenhuma imagem ou descrição me preparara para aquelas noções de distância, de amplitude, para a ausência de teto ou paredes, para a visão do céu.
Como poderia entender o real significado de liberdade sem nunca ter visto a imensidão do mundo?
Imediatamente compreendi as ausências diárias de meu pai, aquelas que me causavam tanto ciúmes. Era impossível competir com aquilo.
Talvez você já saiba como é a superfície de algum mundo, mas não a do meu. É plana a perder de vista. Rochas de tamanhos variados pontilhavam a paisagem, algumas tão colossais quanto nossa morada principal nas cavernas. Mesmo com elas, a impressão dominante era de uma imensa e vazia planura. Não havia sinal de plantas, nem o brilho de água. A vida nativa, como nós, parecia preferir a segurança do subsolo.
Tampouco parecia haver animais perigosos. Tive certeza de que minha mãe exagerava.
Meu pai quebrou meu devaneio com a pergunta esperada:
– E então, o que achou?
É curioso que não tenha sido o mundo aberto o que mais me maravilhou, mas a sensação de ter meu pai ali, comigo. Como se existíssemos apenas nós dois, num mundo criado exclusivamente para aquele nosso instante.
No subterrâneo, era quase impossível estar só. Uma sensação constante de sufoco nos acompanhava. Sempre soube disso, sem entender o porquê. Nossa abóbada abrigava um fluxo constante de centenas de pessoas em suas vidas. E os ecos... Ecos de geradores, estufas, exaustores. Quis saborear aquele momento: eu, ele e o céu.
– O céu é sempre tão cinza? - perguntei.
– Quase sempre que subo está nublado. São nuvens que bloqueiam a visão. Mas nem sempre. Às vezes, com céu limpo, você verá os detritos, milhares de pontos cobrindo tudo. Tantos que formam um segundo céu. Camadas e camadas, como uma cebola, envolvendo o planeta. De algum modo, as poucas frestas nessa nuvem de lixo espacial e suas superfícies espelhadas permitem a passagem desta pouca luz solar. Com muita, muita sorte, conseguirá ver uma ou outra estrela à noite.
Sempre fui curiosa por aqueles temidos detritos que, entre outras coisas, nos impediam de viver na superfície. Geralmente, eram inertes, entulhos flutuantes acumulados por milênios, pairando ao redor do planeta. Ocasionalmente, porém, caíam em profusão, como uma chuva de metal incandescente.
Das cavernas, não ouvíamos nada.
Alguns detritos pareciam naturais: fragmentos rochosos de uma lua antiga, outrora imensa, agora desintegrada. Muitos outros, porém, eram artificiais, obra de alguma espécie que habitara o planeta ou a própria lua.
Não sabíamos quem construíra aqueles equipamentos, nem para quê. Nada sobre o povo que destruíra sua própria lua. Se restaram vestígios de alguma civilização, estavam distantes, inatingíveis. Era irônico pensar que as únicas memórias de um povo fossem seu lixo. Sinto uma profunda pena deles.
Chegamos aqui, neste planeta, por mero acaso.
"Éramos um povo das estrelas", suspirava minha avó, os olhos fixos num passado que só ela via. "Nascidos e vividos em naves que eram universos em miniatura, gigantes autossuficientes em perpétuo movimento". Assim cantam as baladas do Festival da Queda: gerações nômades, parando apenas para minerar o necessário e despejar o desnecessário.
Uma frota unida, poderosa – uma corrente de força, dizem. Até que a corrente se quebrou.
Conflitos internos fizeram conflitos antigos e novos aflorarem. O que restou foi a fratura: laços desfeitos, naves-irmãs tornando-se espectros distantes. E na esteira dessa diáspora, à deriva, estava a nave que trazia meus avós e meus pais – estes, meras crianças envolvidas pela tragédia iminente.
Os mais velhos? Carregam essa memória como um ferro na alma, silenciados pelo arrependimento ou entrincheirados numa teimosia ancestral. Pois a solidão do espaço não perdoa: isolados, como um galho arrancado da árvore, não souberam curar as feridas de sua própria nave-mãe. A história, repetida ano após ano no Festival da Queda até se tornar quase um mito fala de uma falha traiçoeira, um coração mecânico que engasgou e silenciou a nave.
Quase tudo a bordo, a rotina, a vida, alimentava-se da luz solar disciplinadamente armazenada. Mas para rasgar o véu entre as estrelas, para saltar abismos de vácuo, era preciso o poder bruto de fusões nucleares, dependentes de um mineral tão raro em todo o universo. E foi ali, no âmago dos motores de dobra, que a semente da catástrofe germinou, alastrando panes por todos os sistemas vitais. A punição pela arrogância, sussurram os mais cínicos nas sombras do Festival. Nossos antepassados ficaram sem combustível.
Como única, desesperada alternativa, seus olhos se voltaram para este planeta. Talvez um pressentimento, talvez o delírio do desespero, mas nos anéis de detritos que nos encarceram hoje, eles julgaram ver o fantasma do mineral raro. E apostaram tudo. Quem sabe, nesse lixo abandonado por outra civilização, não encontrariam a centelha para reacender seus motores de dobra?
Isso aconteceu exatos sessenta e dois anos antes daquele meu décimo segundo aniversário, o Dia de Queda.
Damos ao evento este nome pois não foi de fato um pouso, mas uma vertiginosa e desenfreada descida.
Os detritos que coroam este planeta, de material e comportamento instáveis, rasgaram as entranhas da nave, roubando-lhe o último suspiro de autonomia. Pedaços dela, estilhaços de nossa história, fundiram-se àquele cemitério orbital.
Era por esses detritos, os que caíam eventualmente, que meu pai subia à superfície. E foi por isso que subi com ele naquele dia.
O céu, antes apenas cinzento e vasto, rasgou-se numa fúria escura e repentina, lançando grãos de areia que açoitavam a pele.
Meu pai agiu com a presteza de quem conhece os humores do planeta. Puxou a touca protetora sobre minha cabeça, ajustando-a firmemente sobre a máscara ocular. Eu estava encapsulada, mas o mundo exterior rugia. Pensei que recuaríamos imediatamente para a segurança do poço. Mas ele se inclinou, a boca colada ao meu ouvido para que sua voz vencesse o uivo da tempestade de areia.
— VÊ ALGUMA CRATERA? ALGUM DESTROÇO DE NAVE?
Não, eu não via. Fiz um sinal negativo.
— EXATO! — gritou ele, o som abafado pelo vento e pela touca. — ESTAS TEMPESTADES NIVELAM TUDO! O QUE RESTOU DA NAVE-MÃE JÁ SE PERDEU SOB ESTAS AREIAS HÁ MUITO TEMPO! OLHE ALI!
Mesmo com a visão limitada, acompanhei seu dedo enluvado. Ele apontava para uma ondulação quase imperceptível no terreno varrido pelo vento, um montículo sutil que eu jamais teria notado sozinha.
Ele continuou:
— O VENTO TAMBÉM ESCONDE AS CRATERAS DE IMPACTO! — Sua voz era carregada de uma urgência que me fez prender a respiração. — TRANSFORMAM-SE EM ARMADILHAS DE AREIA MOVEDIÇA! FOI NUMA DESSAS QUE SEU TIO... — Ele hesitou - MORREU. NÃO CONSEGUIMOS TIRÁ-LO A TEMPO, COMO TANTO OUTROS.
Assenti.
– E NO FUNDO DESSAS CRATERAS, ACUMULA-SE ÁGUA DA CHUVA. ELA PERCULA FILTRADA PARA NÓS. MAS O QUE FICA FUNDO DA CRATERA, ATRAI ANIMAIS. PEQUENOS, MAS LETAIS.
Assim entendi a advertência de minha mãe. Os animais perigosos eram justamente os menores, os ocultos.
Subitamente, quis perguntar a meu pai. O que aconteceu com meu tio? Foi soterrado, ou pego por animais?
A tempestade engolia todos os meus sentidos. Os grãos de areia carregados haviam se transformado em pequenos seixos que tamborilavam dolorosamente contra meu corpo. Curvei-me, fincando os pés com toda a força para não ser varrida. Cada segundo ali era uma pequena eternidade de esforço. O sorriso habitual de meu pai desaparecera completamente, substituído por uma gravidade solene
Ele segurou meu braço com uma força que era tanto de ancoragem quanto de determinação, e então, como se estivesse prestes a me confiar o segredo mais vital do universo, sua voz, ainda gritada, mudou de inflexão:
— VOCÊ PRECISA ENTENDER AS CRATERAS, FILHA! — Seus olhos buscaram os meus através dos visores. — SABE POR QUÊ? ELAS SÃO MAIS DO QUE PERIGO!
Ele fez uma pausa. Eu sabia, com uma certeza infantil e absoluta, que o que viria era crucial.
— ELAS SE FORMAM QUANDO OS DETRITOS CAEM! E ESSES DETRITOS... ESSES FRAGMENTOS DO CÉU... SÃO NOSSA ÚNICA ESPERANÇA!
Meu pai espaçava suas frases, para eu absorver a importância da mensagem.
— A TECNOLOGIA ANTIGA QUE CARREGAM, OS MATERIAIS EXÓTICOS... PODEMOS REAPROVEITÁ-LOS! DE ALGUMA FORMA MILAGROSA, RESISTEM À QUEDA! NOSSA MISSÃO, MINHA E AGORA SUA, É ENCONTRÁ-LOS ANTES QUE A AREIA OS SUFOQUE PARA SEMPRE!
Eu ainda sentia sua mão firme me agarrando à superfície. Seu olhar era fixo.
— UM DIA, EU SEI, UM DESSES METEOROS ARTIFICIAIS TRARÁ O ISÓTOPO NUCLEAR QUE PRECISAMOS! NÃO PARA A NAVE... ESSE SONHO MORREU COM A QUEDA! MAS PARA ALGO MENOR, INFINITAMENTE MAIS IMPORTANTE! UM COMUNICADOR!
"Comunicador". A palavra vibrava em minha mente, mais nítida que o rugido da tempestade. Como um sino há muito silenciado, querendo soar.
— UM SINAL! — A voz de meu pai era quase um rugido de fé contra o universo, seus olhos brilhando com uma intensidade febril. — UM GRITO ATRAVÉS DO VAZIO! PARA ENVIAR UMA MENSAGEM EM VELOCIDADE DE DOBRA! UM FAROL NA IMENSIDÃO ESCURA, ANUNCIANDO AO UNIVERSO: ESTAMOS AQUI! AINDA ESTAMOS VIVOS!
"Comunicador". O nome... Eu o conhecia. A lembrança me atingiu como um raio: meu amuleto. A peça que meu pai, em outro aniversário, dissera ser a “mais importante de uma nave”. Não uma peça qualquer. Era aquilo. Um farol, adormecido em meu pescoço por tantos anos, aguardando apenas uma fagulha para despertar e cumprir seu propósito.
Respondi com toda a convicção que uma menina de doze anos, herdeira de um legado de estrelas e poeira, poderia reunir. Minha voz seria inútil contra a tormenta, mas ele leu a promessa em meus olhos. Segurei o meu amuleto.
– Vamos ligar esse comunicador. Amanhã, ou em algum dos muitos amanhãs que virão. Vamos ligar.
Este é um conto que guardo com carinho, talvez pela delicada relação entre pai e filha — um tema que, como pai, ressoa em mim e aparece em outras histórias que escrevo. Não houve um momento específico que o tenha inspirado; ele nasceu da própria criação do mundo: um planeta de superfície instável, onde uma tripulação fica presa no subsolo. Aos poucos, essa tripulação se transforma em uma civilização, e é desse surgimento que o conto floresceu, quase que sozinho. É um conto que devo ter revisado algumas várias vezes.