Farol de Areia

Reunião de imagens e textos de Thomas J Schrage

Só mais um Deserto para Atravessar

Dihya encarava a lua cheia. Será que, olhando fixamente, a Lua não se mexeria? Ficará ali, estática, e a noite nunca terminará? Mais importante, o amanhã não chegará? Igual a quando ela olhava o bolo assando. “Se olhar, ele para de assar”, sua mãe dizia e ela acreditava. Mas não é assim que acontece. “Pensamentos bobos, você não é mais criança, é uma embaixadora e tem uma missão”, murmurou para si mesma.

O frio começava a incomodar conforme a noite avançava — e a Lua, obviamente alheia a tudo, caminhava pelo céu. Não era esperado frio para aquela noite de verão. Sua roupa, composta apenas de uma calça, um fino moletom e um hijab, logo seria insuficiente. De qualquer forma, era inútil se preparar para o clima. Poderia nevar, fazer um calor infernal, o mar subir e engolir a cidade, ou secar para sempre. Tudo estava imprevisível, tudo era possível.

Sentada ali, conseguia ter uma visão ampla das ancestrais ruínas, hoje um sítio arqueológico cravado na cidade. Mais além, conseguia até mesmo ver o Mediterrâneo. Não podia deixar de perceber a beleza do cenário, com o vento gelado assoprando sua face, as construções de pedra corroídas pelo tempo, o som das ondas badalando sua mente, e lá no alto, quase ofuscados pela Lua Cheia, diversos pontos coloridos. As Cidades-Satélites, sendo construídas por milhares de frenéticos e incansáveis trabalhadores, invisíveis daquela distância. Um cenário perfeito entre presente e futuro.

Ah! As Cidades-Satélites, a aposta da humanidade. Dihya sabia que era uma solução ineficiente, muito ineficiente. Precisavam fazer mais. Ela faria mais.

— Dihya, achei você!

A mulher não precisou se virar para reconhecer a voz. Era Aníbal, seu irmão menor. Tão crescido, barba grande, ombros largos. Como ele mudou tão rápido?

— Eu não sabia que estava me escondendo, irmão. Que a paz esteja sobre você! — Ela sorriu assim que ele se sentou ao seu lado. Por mais que estivesse preocupada, aflita, o irmão dela sempre a fazia sorrir. Fazia todos sorrirem.

— E sobre você a paz. Não estava se escondendo? Você sempre vem para essas ruínas, quando está chateada ou ansiosa.

— Para namorar também, mas isso eu não contava para vocês.

— Só se for para namorar pedras. O que está pensando, irmã?

— Como sempre, um monte de “e se”. E se nossa cidade não tivesse sido destruída milhares de anos atrás pelos Romanos, mas ao contrário, Cartago vencesse? E se nosso ancestral reino da Numídia tivesse resistido a toda forma de intrusão? E se fossem os imperadores do Egito a marchar sobre a Europa, roubando deles seus monumentos? E se não fôssemos palco de disputas da Europa e dos Otomanos? E se os povos de nosso continente encontrassem as Américas sozinhos, antes de serem escravizados, chegando lá como livres?

— Passado, irmã. Cartago não venceu, mas aqui estamos. Seja como for, toda a humanidade está igualmente condenada, e é por isso que você só precisa se preocupar com amanhã. O seu grande dia, hein?

— É sobre amanhã também, irmão. Não sei se sou a pessoa certa. Você sempre é quem olha para o futuro. Você e sua esquisitice de montar miniaturas perfeitas das Naves Exploradoras. Lembro quando criou uma espécie de drone espião, e o escondeu no colégio. Mãe ficou furiosa pensando que você seria expulso! Mas sortudo que é, foi visto como um gênio. Agora, olha só, Engenheiro-Chefe da Liga Espacial Afro-Árabe. Sempre olhei para ruínas… Nem sequer vi você virar um homem.

— Não se preocupe, Dihya. Você se afastou porque precisou, e amanhã fará o que precisa ser feito. Lembre-se do que o pai nos dizia. Nossos antepassados cruzavam o deserto sem certeza alguma. É só mais um deserto para se cruzar. Se algum futuro me preocupa é o jantar. Mãe fez cuscuz. Pronto, sabia que você iria se animar!

. . .

O zumbido dos propulsores sempre deixava Dihya com uma leve tontura. Conseguia admirar a nave, toda a engenharia e toda a tecnologia por trás dela, mas decerto não com a mesma empolgação que o irmão dela mostrava nessas situações.

Ela precisou tomar duas pílulas de um remédio contra enjoo antes de embarcar. Centenas de voos, porém seu corpo nunca parecia se acostumar. Se era assim voando na atmosfera, imagina no espaço, sem referência alguma? Seria pior, ou melhor?

— Olá, boa tarde. — Dihya cumprimentou a piloto assim que embarcou, testando o microfone do capacete.

Colocá-lo sobre uma toca, usada sobre o hijab, que por sua vez cobria seu longo cabelo, era um verdadeiro incômodo. Um quente e suado incômodo.

Sem contar que essas naves da Força Espacial Unida eram sempre minúsculas e quentes. Parecia que o resfriamento pelo ar-condicionado não precisava ser potente, no gelado espaço. E sentar-se num cockpit, feito para um copiloto? Com certeza a cadeira não reclinava. A pasta que carregava — sua missão — precisaria ficar no colo. Por que não enviaram um jato comercial normal, se o seu voo era apenas uma simples viagem?

— Boa tarde, Senhora Embaixadora. — A piloto respondeu sem muita atenção.

Ela estava ocupada, verificando o plano de voo e os controles. Minuciosamente. Dihya sempre se admirava como os pilotos eram burocráticos em suas tarefas, passando agilmente os dedos nos controles em touchscreen, conferindo cada elemento da nave, cada luzinha piscante, repetindo “checado”, “checado”, “checado”.

— Controle de voo, aqui é a Capitã Dandara, código 342, Nave Padrão F.E.U. Saída em Túnis, destino: Joanesburgo. Tempo de voo estimado em 6 horas e vinte minutos, chegada às 20h local. Autonomia de voo de 31 horas em cruzeiro. Condições de tempo imprevisíveis. Armas operantes. Missão: transporte da Embaixadora da Liga Espacial Afro-Árabe.

Armas operantes? Em uma missão de transporte? Pelo horário de voo, Dihya atrasaria a hora do maghrib, a oração do pôr-do-sol. Algum sentimento dizia que ela teria muito o que agradecer nesta oração. Teria dedicação dobrada se não vomitasse.

A Embaixadora não ouviu a resposta do Controle de Voo para a piloto, provavelmente estavam em um canal separado. Tudo bem, o aumento no barulho, o brilho azulado nos propulsores, a trepidação da nave, o sinal da cruz que a piloto fez, indicavam que estavam prontas para decolagem. Estava receosa quanto às particularidades deste voo, mas não gostaria de demonstrar isso. Como embaixadora, era sempre observada, então esperaria pacientemente. A verdade sempre surgia. Sua missão começava. Não poderia retornar agora, de qualquer modo.

Pouco tempo depois da decolagem, assim que a nave entrou em cruzeiro, o sono veio. Aeronaves sempre foram um ótimo sonífero para a embaixadora. O remédio para enjoo só reforçava o inevitável.

Horas se passaram, até que Dihya acordou, ainda em voo, provavelmente pela abrupta vontade de encontrar um banheiro. Todo aquele café pela manhã, enquanto revisava seu trabalho, cobrava o preço.

— Capitã Dandara. Com licença. Posso fazer um pedido? — Ela espaçou bem as palavras. Para Dihya era difícil falar durante o voo. Todas as suas forças eram gastas lutando contra o enjoo.

— Sim, Senhora Embaixadora. Bem-vinda de volta. Por favor, sinta-se à vontade. — A piloto respondeu pelo microfone no capacete.

— Sei que temos um cronograma e plano de voo, mas poderia voar mais baixo e um pouco mais lento, só por um momento? Eu gostaria de olhar para a paisagem. — Seria uma boa distração, pensou.

Dihya, como embaixadora, estava acostumada a visitar todos os países e continentes, e a observar como as paisagens estavam mudando rápido. Era como uma bola-de-neve. As mudanças começaram lentamente, há séculos, desde a primeira chaminé industrial, desde a primeira floresta derrubada, e então aceleraram, aceleraram, até se tornar uma avalanche.

— Sim, Senhora Embaixadora, mas saiba que a uma altitude menor, a nave ficará mais quente e balançará mais.

— Tudo bem. Será só por um pouco.

— Confirmado. Descendo para 2900 pés acima do nível do solo.

Deserto. Deserto onde deveria existir uma floresta. Apenas cinco anos atrás, tinha certeza de que ainda existia uma floresta ali. Estavam passando pela região equatorial. Não sabia nem mesmo o nome daquela mancha de solo estéril que encarava. Parecia que todos os desertos do continente finalmente se juntaram. Talvez todos do mundo. A areia, a argila e o pó flutuavam por correntes atmosféricas por todo o globo, e assim seria até depois do planeta inteiro virar areia ou gelo.

Sua missão era mais urgente do que parecia. Sentiu o peso da pasta sobre o colo. Olhou para a piloto, pelo reflexo do para-brisa. Ela deveria ter quantos anos? Cerca de vinte e cinco? Difícil dizer por trás do uniforme.

A piloto percebeu que estava sendo observada.

— Senhora, se me permite dizer, escolhi transportar a senhora. Quando soube da oportunidade, me voluntariei. Eles queriam mandar um piloto novato, recém-formado. Mas insisti em participar.

— É mesmo? — A Embaixadora sempre achava graça quando alguém insinuava que ela era famosa. Não se acostumava a ser uma figura pública.

— Sim, minha família e eu ouvimos vários dos seus discursos. O que a senhora fez, essa ponte política entre a Liga Árabe, a Liga Norte-Africana e a Liga Subsaariana, foi incrível. Criar uma única liga, pacificada. Incrível mesmo. Inspirou-me a entrar para a F.A.U, a olhar para as estrelas.

“Olhar para as estrelas”. Ela com certeza se daria bem com Aníbal.

— Capitã, se me permite a intromissão. De onde você é? Não reconheci seu sotaque. — Elas estavam conversando em francês, um idioma herdado por alguns desde os tempos pretéritos da colonização, e um dos idiomas da F.A.U.

— Nasci em Angola. Quando criança mudamos para o Brasil, mas agora vivo onde a F.A.U me alocar. Já devo ter passado por uns cinco países.

Angola e Brasil, ambos afetados pelo Grande Incêndio, que assolou há uma década quase todas as regiões tropicais do planeta. Foi um dos impulsos, dentre vários outros, para o apressado Projeto Cidades-Satélites.

— Capitã, você que está vendo de perto as Cidades-Satélites sendo construídas, o que acha da ideia? — Mas não era essa a pergunta que ela queria fazer. Ela queria perguntar na verdade: “Haverá espaço para todos?” “Quem será escolhido para migrar até lá?” “Como será viver confinado, vendo de cima o mundo morrer?”

Antes que Dandara pudesse responder, um alarme tocou. A luz da nave mudou para vermelho.

— Piratas. — Dandara informou. — Três deles, nos perseguindo. Vou tentar me comunicar com eles. Um momento.

A Embaixadora virou o rosto o máximo que pôde para trás. Enquanto a nave fazia uma curva, ela conseguiu ver de relance as outras aeronaves. Eram um pouco maiores, de um modelo que misturava várias partes de outras aeronaves, inclusive pedaços de naves da F.A.U, abatidas ou roubadas.

— Controle de Voo. Aqui é a Capitã Dandara, código 342. Estamos sendo perseguidos por três naves não identificadas. Contato visual confirmado, mas sem resposta ao contato verbal. Enviando localização e radar de situação. Aguardo instruções.

Logo na sequência, Dihya ouviu vários tiros, observando pela pequena janela as luzes dos projéteis incandescentes traçarem uma curva enquanto a nave mantinha seu zigue-zague.

— Controle de Voo. Confirmado. Saraivada de aviso efetuada. Não desviaram. Continuo em manobras evasivas. Aguardo instruções.

A mesma burocracia ao ligar a nave. Pilotos treinados dependiam dela, para não entrarem em pânico e cometerem erros. Dihya com certeza estava em pânico. Agradeceu que o cockpit dela estava inoperante, ou então poderia causar algum acidente, pois ela não previu o que a piloto faria logo a seguir.

Dandara virou o manche totalmente à direita, ao mesmo tempo em que inverteu os propulsores de direção em 180°. Dihya, quase desmaiando, nem sabia que isso era possível, e parecia que os piratas também não. A manobra fez a nave dar um grande giro, invertendo-a em uma volta completa. Mais projéteis incandescentes, e um estrondo. Rápido assim, a piloto havia diminuído em dois o número de perseguidores.

Passou no meio deles, que haviam se afastado, cada um em uma direção. Se fossem treinados, provavelmente manteriam o curso e iniciariam um contra-ataque.

Dandara então começou a subir, empinando a nave, milésimos de segundo antes que os piratas optassem por fazer uma curva fechada, cada qual para um lado. Dandara fazia uma inversão vertical. Ela não só subia, mas realizava um arco invertido e curvado. A nave estava começando a ficar de ponta-cabeça.

Dihya odiava montanhas-russas, e, em uma nave, em velocidade de combate, a sensação da força G era esmagadora. O sangue estava sendo jogado para o cérebro. Precisava de um saco urgentemente.

Um dos piratas ainda terminava o giro. Como a manobra de Dandara foi muito mais compacta, ela conseguiu um ângulo de ataque assim que iniciou a descida, ainda de ponta-cabeça. Era como se Dandara já soubesse a velocidade, a curva, a reação do outro piloto antes mesmo que ele optasse por fazer a manobra de inversão vertical. Novos tiros, e menos um pirata.

— Ah! Adoro essa manobra. Gosto de chamar de meia-lua, sabe, como na capoeira? — A piloto exclamou, obviamente animada com a situação, alheia à força G.

Dihya não conseguia se empolgar. Sabia que sua vida dependia da vida deles, mas entendia os motivos deles, a pobreza extrema, o desespero. Desejou que o último pirata desistisse.

— Controle de Voo. Duas naves perseguidoras abatidas. Espera… A última está abrindo um canal, rendendo-se. Sim, obrigada. Mesmo? Um novo recorde, duas naves em 45 segundos? Fico feliz, mas o recorde anterior era meu também. Aguardo instruções. Certo, confirmado, continuarei com a missão de transporte. Instruções: Permitido o recuo da última nave perseguidora.

— Recuar? — Perguntou a Embaixadora, surpresa.

— Não temos tempo para escoltá-lo, além do que seria perigoso. Ele poderia chamar reforços, enquanto nós, bem… Não temos muito pessoal aqui embaixo. A política da F.A.U é fazer prisioneiros, mas se não for possível, deixamos o inimigo fugir. Melhor do que a outra opção.

Subitamente a luz vermelha da nave se apagou, e Dihya largou os braços da cadeira, que sequer havia percebido estar apertando fortemente.

Ela sabia que a pirataria havia se intensificado. Grupos deles ficavam próximos às grandes cidades terrestres, que estavam sendo desmontadas para retirada de matéria-prima, desde que todas as jazidas naturais haviam se exaurido. Cidades principalmente europeias e asiáticas, construídas com minérios africanos roubados séculos atrás, sendo agora desmontadas e enviadas para o espaço, literalmente. Mas não sabia que agora havia pirataria também em locais desérticos, pois, bem, não havia muito o que se roubar. Muito possivelmente uma medida desesperada, para conseguirem qualquer coisa que pudessem pegar. Pensou que a F.A.U sabia sobre os piratas, e escondia a informação do público. Estavam perdendo o controle.

Não conseguiu voltar a adormecer, mas pelo menos, não vomitou.

. . .

Havia centenas de manifestantes. A Embaixadora foi escoltada do carro até a entrada da sede das Ligas Espaciais Unidas, passando em meio a vários cartazes, alguns favoráveis, a maioria contrários ao controverso Projeto Cidades-Satélites. Estava cansada, era noite e teve tempo apenas para uma oração e um banho rápido no hotel após o pouso.

Ficou feliz por ter sido acompanhada até mesmo pela Capitã Dandara. Agora, sem o capacete, máscara e macacão, conseguia ver que a piloto, com enormes tranças coloridas, um largo sorriso, parecia mais jovem ainda.

Uma nova geração. Será que as próximas gerações estão fadadas a viver em cidades artificiais, sob uma constante ameaça de guerra entre nações esgotadas, em meio a piratas desesperados? Apertou sua pasta contra o peito. Há alternativas.

O prédio era moderno, um monumento aos novos tempos prometidos. Na grande sala de reunião, com as bancadas circulares, os assentos eram sorteados. A cúpula era de vidro, uma enorme tela que mostrava uma animação do céu noturno, destacando as Cidades-Satélites, como se observadas de vários locais da Terra.

Ao encontrar seu assento, ficou feliz por saber que se sentaria ao lado do embaixador da Liga Latino-Americana, um brasileiro chamado Paulo. Melhor, uma brasileira. Dihya precisava se lembrar que a representante preferia pronomes femininos. Do outro lado, estaria o embaixador de Israel. Não conseguia se lembrar do nome dele.

Não estava muito à vontade para conversar com os diversos outros representantes, que formavam panelinhas, de pé, rindo uns com os outros, tirando fotos, trocando cartões. Também não sentiu vontade de explorar, na sala ao lado, o café e comidas variadas, onde provavelmente teria que se socializar com alguém. Havia momentos que isso era necessário — e ela era muito boa nisso. Mas hoje ela precisava se concentrar.

Era muito estranho perceber como aquelas pessoas se sentiam tão à vontade ali, enquanto lá fora a polícia empurrava com escudos centenas de manifestantes.

Mais cinco minutos para o Congresso começar. “Concentração Dihya, concentração”. Será que deveria olhar novamente a sua apresentação? Rever o seu discurso? Melhor não. De qualquer forma, percebeu que Paulo estava vindo.

— Bom dia, Senhora Dihya!

— Bom dia Paulo, você… Você mudou! Está linda.

— Sim, agora você e ninguém mais vai errar os pronomes. Aliás, impressão minha ou o seu espanhol melhorou?

— Sim, andei estudando. Estamos buscando uma aproximação com a Liga Latino-Americana.

— Sua cara! Então, me diga algo. O que achou da viagem?

Pergunta estranha, pensou Dihya.

— Uma aventura, pode-se assim dizer.

— Fiquei sabendo, por algumas fontes, que sua Liga está planejando algo novo. — Paulo disse com um ar misterioso. — Sabe, com meu sorriso e bons drinques brasileiros, outros embaixadores costumam falar mais do que desejam. Descobri por eles que vocês da Liga Afro-Árabe estão escondendo algo novo, e isso incomodou muita gente.

— Bom, era um projeto secreto por estar em fase inicial. Internamente na própria Liga poucas pessoas o sabiam. Hoje será anunciado. Estávamos esperando apenas o momento certo. — Dihya, de certo modo, não ficou surpresa com o fato de que algum rumor havia se espalhado. Muito menos surpresa com o fato de que um novo projeto tenha incomodado outras pessoas. As Cidades-Satélites eram uma mina de ouro e qualquer novidade poderia ser uma ameaça.

— Então você tem muito o que me agradecer. — Disse Paulo, jocosamente.

— Como assim?

— Falei com a F.A.U que um grupo radical antiexploração espacial ameaçou todos os embaixadores. Não é totalmente uma mentira, mas isso forçou-os a pensar em nosso transporte de modo mais… cauteloso. Fiz isso porque pensei que você, minha amiga, poderia estar em perigo.

— Sim, de fato fui atacada por piratas. Pensando bem, achei a situação estranha. Talvez nem fossem piratas. — Dihya poderia ter ficado brava, mas estava apenas triste.

Um sinal tocou. O congresso finalmente se iniciaria. Lentamente os participantes começaram a se sentar, exceto o embaixador de Israel. Ele seria o primeiro a falar.

Israel estava adiantado no cronograma. Foi um dos poucos países que decidiu fazer uma Cidade-Satélite por si mesmo, sem participar de uma Liga. Conseguiram finalmente terminar toda a estrutura básica, e as primeiras famílias de colonos voluntários chegariam ainda esta semana.

Após as congratulações e onda de esperança, o Congresso seguiu para o caminho previsto. A Embaixadora pouco conseguia se concentrar, sendo chamada à superfície de sua atenção apenas pelos comentários irônicos de Paulo.

Ela percebia apenas trechos de discussões sobre a falta de materiais, o aumento dos distúrbios populares, intrigas milenares e sem sentido entre Ligas, ou mesmo dentro das próprias Ligas. Ouviu sobre uma imprevista tempestade de areia que surgiu durante a decolagem de um grande cargueiro, que caiu sobre uma doca inteira na Austrália. Uma grande perda material e de vidas para a F.A.U.

Sua atenção só retornou de fato quando seu nome foi chamado. Era o convite para ir palestrar.

Acenou para Paulo, e olhou ao redor. Não era a mesma mulher, que horas antes estava apavorada em uma nave. Ela era a pilota agora, e aquele era o espaço dela.

Caminhou calmamente até o centro, onde havia um pequeno palanque.

— Boa tarde, senhores e senhoras. Que a paz esteja sobre vocês. Estamos há anos fazendo esses Congressos, reuniões, encontros e acordos. Fico feliz que o projeto Cidades-Satélites está realmente caminhando para o sucesso temporário.

Vozes, múrmuros, exclamações e reclamações. A palavra temporária era algo que incomodava todos. Um tabu entre todos os presentes.

— Sim, temporário. Hoje estamos desmontando cidades inteiras em busca de matéria-prima. No futuro, poderemos tirar cada pedra do planeta e remontá-lo. Mas haverá um limite. Um limite de espaço menor do que o necessário para nossa população.

— Senhora Embaixadora, com mil perdões, mas isso foi tema de discussão durante décadas. Há décadas nenhum outro modelo foi concebido. Será que é proveitoso mesmo trazer essa questão novamente à pauta, com tantas outras mais urgentes? — Quem dizia era o embaixador de Israel.

— Obrigado, Senhor Embaixador. Assim como as demais apresentações, haverá espaço para debate posterior. Assim, peço que não me interrompa, do mesmo modo que o senhor não foi interrompido. Você verá que se precipitou. (Como era a manobra que Dandara fez? Meia-lua. Isso, você está prestes a receber uma meia-lua, meu caro, pensou Dihya com um brilho nos olhos) Pois aqui vai a resposta.

Dihya abriu a pasta e dela retirou uma pequena esfera. Um projetor holográfico, que, assim que ligado, mostrou uma grande espaçonave em três dimensões. Pela escala, ela seria enorme, maior do que três ou quatro Cidades-Satélites. Vozes, múrmuros, exclamações e reclamações.

— Todos sabemos que existem planetas que possam ser habitados, desde que a humanidade lançou as Naves Exploradoras. Todos sabemos que a migração sempre foi uma constante na nossa espécie. Algumas voluntárias, outras forçadas por desastres, invasões, guerras ou escravidão. Senhores, neste quesito, como embaixadora da Liga Afro-Árabe, devo dizer que temos muita experiência neste tópico.

Enquanto muitos mostravam claro espanto, Dihya viu Paulo enviar um sinal de positivo.

— Vocês podem, claro, voltar para trás. Ir contra a corrente da história que marca nossa espécie, e voltar para essas cavernas elitistas chamadas Cidades-Satélites. Ou podem ir além. Além das estrelas. O grande empecilho para tanto era uma lacuna no modelo de Terraformação completa. Se não, a colônia seria apenas uma Cidade-Satélite, como qualquer outra, pousada em um planeta estranho e hostil. Pois bem, uma equipe chefiada pelo Engenheiro-Chefe de nossa Liga apresentou uma solução mais ampla. Apresentamos um novo projeto. Um projeto para buscar novos planetas e torná-los habitáveis. E assim, sermos livres para migrar pelo espaço.

Finalmente a plateia se silenciou.

— Agora que tenho a atenção completa de todos, posso mostrar os detalhes. Por favor, peguem os óculos de realidade virtual, eles estarão sincronizados com esta projeção. Ótimo, agora procurem pelo arquivo “Projeto Cartago”, e se preparem para saber como atravessar um deserto.

Este é um conto que nasceu de uma seleção para uma revista (e chegou a ser selecionado) cujo tema era afrofuturismo. Geralmente não sou bom em escrever contos com temas, e às vezes penso em mudar algumas coisas desse texto. Infelizmente a revista foi descontinuada antes da publicação do conto. Talvez em uma outra oportunidade eu mexa nele.