Farol de Areia

Reunião de imagens e textos de Thomas J Schrage

Para Além da Fenda dos Universos, Ninguém Sabia o seu Nome

Ninguém sabia o seu nome. Ou, então, ninguém nunca precisou dar-lhe um. Ela se alojou na miúda fenda que se interpunha entre os universos da Existência e da Não-Existência, num espaço além do Tempo. Criou neste espaço o seu belo mundo. E esperou.

Em seu mundo, brumas sutis de uma luz anil desenrolavam-se como correntes, circundando uma colossal árvore. Suas enormes raízes medravam a esmo sob um lago, cujas pequenas ondas bamboleavam na tentativa de encobrir os filamentos mais delgados da planta. E era dentro desta grande árvore que ela morava. Solitária ao longo da eternidade, envolta apenas em si…

Até que alguém bateu à sua porta.

A pequena criatura que a visitava possuía feições humanas, apesar de sua pequena estatura e estranha roupa. Ela socava ansiosa a depressão circular que imaginava ser a entrada para a árvore. Não possuía certeza se alguém ainda vivia lá dentro; se é que já viveu. Mas precisava tentar.

Foi com grande espanto que a criaturinha viu a depressão sumir, como se nunca tivesse existido. Pela recente abertura, se deparou com um vulto nebuloso, sem forma e translúcido, que foi transfigurando-se lentamente em algo corpóreo, com um sutil contorno semi-humano.

A pequena criatura disparou a falar:

– Mil perdões, senhor ou senhora, por não ter me apresentado. Nossa, que mal-educada eu sou! Bem, meu nome é Ocaso, filha do Tempo.

A figura Sem-Nome levantou uma mão, o que fez a diminuta criatura calar-se de imediato. Rodopiou delicadamente seu braço, acenando para dentro da Árvore-Casa. Era um convite para ambas entrarem até o meio da sala e se sentarem.

A entidade Sem-Nome examinou sua visitante. Sentiu nela a mesma essência anímica que uma divindade do Tempo apresentaria. Com certeza, era uma criatura do Tempo. Mas sentia outra essência também… O que era essa outra sensação? Será que tudo lá fora havia mudado e não mais reconheceria o Universo e a essência de seus seres? Abruptamente, lembrou-se que a educação exigia que ela falasse alguma coisa. Era indelicado encarar os outros por muito tempo. Balbuciou, pois mal se lembrava como falar.

– Quem… Hum! Quem. É. Quem é você?

– Mil perdões, senhor ou senhora, por não ter me apresentado. Nossa, que mal-educada eu sou! Bem, meu nome é Ocaso, filha do Tempo.

Sem-Nome assentiu com a cabeça.

– Então, senhorita Ocaso, a que devo uma visita tão inusitada? – A entidade Sem-Nome conseguiu falar sem gaguejar, e até soar simpática.

– Eu fiz algo… foi sem querer. Mas eu fiz algo horrível. Eu mudei o fluxo dos Deuses. – a criatura parecia que desabaria em desespero a qualquer momento. Contraiu-se esperando uma bronca.

No entanto, a entidade Sem-Nome apenas apoiou a mão no queixo. De imediato, estranhou o sentimento de seu próprio tato e de sua forma. Estava desacostumada a ter uma forma. Porém, estava mais interessada na história.

– Continue – disse.

– Eu e minhas irmãs gostamos de brincar, você sabe… A Deusa da Vida nos deixa brincar no quintal dela, com suas criaturas Humanas. Gostamos de despencar lá do céu. Escolhemos um alvo aleatório e caímos sobre ele; assim mudamos abruptamente o seu destino, ativamos os caminhos das improbabilidades. Meu pai, o senhor Tempo, fica bem nervoso, mas acho que, no fundo, ele gosta um pouco.

Ela parou o relato por um momento. Até então havia aberto um tímido sorriso, mas de repente, suas feições endureceram. Continuou:

– Eu não vi. Juro que não vi. Uma das filhas da própria Morte indo abraçar um Humano. Quando eu caí, caí em cima dela. Era para ter um humano ali, e quando percebi que erraria o alvo, era tarde demais! Juro! E a esmaguei. Eu nem sabia que eu poderia esmagar uma das crianças da Morte!

Sem-Nome percebeu a gravidade da situação. Era inusitado uma Ocaso impedir a atuação da Morte, mas, de certo modo, acontecimentos improváveis eram justamente culpa da Ocaso e suas irmãs. Pensou mais um pouco sobre o problema criado e relembrou as regras da Existência. Tudo que existe, precisa um dia deixar de existir, esvaindo-se, dissipando-se. Vida e Morte são uma mesma face; quando algo surge ou nasce, gera-se uma filha da morte, exclusiva. Em outras palavras, sempre que a Vida gera um humano, a Morte gera uma filha sombra, que o perseguirá, até o encontrar. Se Ocaso simplesmente esmagou a sombra da morte daquele humano, aquele humano nunca mais poderia deixar de existir.

A miúda criatura continuou a se lamentar. Havia ficado de pé novamente, andando em círculos. Então voltou a falar.

– Eu pensei, “oras, tudo bem, o humano ser imortal”. Aliás, isso deveria ser uma coisa boa para ele, não é mesmo? Mas não, meu pai ficou muito, muito bravo. Me explicou que se o humano nunca falecer, as coisas que viriam depois dele não mais surgirão, que todo o trabalho de meu pai, do Tempo, estava em crise, e teria que ser paralisado. Não entendi nada… Mas não se pode criar uma nova criança-morte para ele, afinal?

A entidade Sem-Nome, versada nas regras do Universo, respondeu:

– Não.

Não se pode criar uma nova criança-morte para ele, pois não se cria a morte sem a vida. Ela é sempre uma consequência, uma posterioridade.

E continuou sua palestra:

– Criança – Fez uma pausa para se ajeitar, não estava acostumada a se sentar, era extremamente incômodo ter nádegas e não ter uma cadeira confortável – Todos os fluxos do Universo se embaralham. Não é só o próprio fluxo da morte do humano que se interrompeu. Mas o de novas vidas que surgiriam depois. Você interrompeu todas as mutações e caminhos que viriam daquele ser, sobretudo de sua morte. Todos os destinos emaranhados que necessitavam do encontro e desencontro com aquele humano. Deixe-me mostrar.

E Sem-Nome caminhou para fora da Árvore. Escolheu uma folha aleatória de um galho que pendia próximo, e gentilmente a colocou na superfície do lago. A diminuta criatura a seguiu com os olhos.

Refletido no espelho da água, havia um calmo homem andando em uma rua, quando, em um impetuoso momento, o seu coração parou de bater. Viram um funeral presenciado por uma triste família, em uma rara aproximação de parentes que já não se gostavam mais. Depois, viram no enterro o reencontro de uma mulher e um homem outrora ressentidos, refazendo as pazes. Viram os filhos que nasceram deste reencontro. Mil anos depois, os genes destes filhos misturaram-se com outros milhares de genes, e assim vieram homens e mulheres que mudaram a humanidade. Quando estes descendentes atingiram as estrelas, mudaram outras civilizações sequer humanas.

A imagem no lago mostrou o corpo do homem falecido transformando-se em cálcio, água e ferro; evaporando-se em nitrogênio e metano, alimentando uma verde-grama e seus microscópicos seres.

Um século depois, aquela grama transformou-se em um arbusto, que posteriormente virou uma árvore. Em cem mil anos, os descendentes daquela árvore reproduziram-se, modificaram-se, um a um. Originou-se uma densa floresta, com novas frutas, vidas e cores ainda desconhecidas.

Então Sem-Nome disse:

– Este é o fluxo controlado pelo seu pai, o Tempo. Mas, agora esse fluxo não é mais possível. Não existe outro possível, pois todos preveem vida e morte, vida e morte, vida e morte, até tudo que existe por fim se dissipar. Nenhum prevê apenas a vida, sem a morte. O Tempo se torna inútil. Seu pai deve estar congelado, paralisado pela agonia de não ter mais razão de existir. A Morte, a Vida e todos os outros Deuses também – Era a sua conclusão óbvia. No entanto, na fenda, elas não poderiam sentir o que ocorreria lá fora e ter certeza.

A entidade percebeu que a Ocaso era mais poderosa do que se poderia imaginar. Entendeu que a outra essência que sentia nela, era a sua própria. Ela também era a sua filha. “Fui irresponsável”, refletiu.

Olhou para sua enorme casa-árvore. Olhou para as cintilantes luzes como névoa ao seu redor. Era um mundo lindo este em que vivia. As raízes nasciam no universo da Existência, a copa tocava o universo da Não-Existência. Sua árvore era o alicerce, a ponte e a ligação entre o que existe, e o que não existe, naquele entre-espaço chamado Fenda.

A Ocaso deu um pequeno grito de espanto quando viu Sem-Nome encostar na árvore e desfazê-la. A árvore, aos poucos, foi dissipando-se em névoa. Sem a Árvore-Suporte, a fenda começou a encolher até o tamanho do nada, e os dois universos se transpunham, despedaçando tudo o que existe ou poderia existir. Era agora imparável o encontro destes dois universos antagônicos. Energia e matéria fundiram-se, a luz e o tempo desvaneceram. Logo, restou apenas o Vazio.

– Minha filha – Ela disse – Meu nome é Caos. E eu e você devemos recomeçar tudo.

Este conto surgiu de uma imagem que eu havia visto no Devianart. Infelizmente, não a encontrei mais. Era uma árvore imensa, solitária no espelho de um lago tranquilo, e diante dela, uma figura minúscula, quase etérea. Havia algo naquela cena que me trouxe de volta a Chrono Cross — um dos raros jogos que joguei no velho Playstation 1. Lembro-me de me aventurar por seus mundos sem entender bem o inglês, apoiado nos tutoriais em blocos de notas que almas generosas compartilhavam na internet. Na mesma época, eu mergulhava na escrita encantada de Jack Vance. Entre memórias de infância, imagens perdidas e a escrita de Jack Vance, esse conto tomou forma.